31/10/2019

CÂNTICO DE FOGO


CÂNTICO DE FOGO
 
 Geraldo Reis

O Juízo Final é um pássaro cego
cravando seu canto de fogo na pupila branca de Deus
que em vão se esquiva
e no corpo do homem 
que inerte 
não se abala.

O Juízo Final teme que os peixes e as plantas
não boiem depois de mortos
por força de alguma desconhecida serpente
ou de algum demiurgo
criado a partir do pensamento da hidra.

O Juízo Final semeia a ferida
que há de preencher os espaços da vinha
           e de envolver os cântaros
a ferida que há de dissipar a memória 
da água e da sede
e da febre, que era alumbramento.

O Juízo Final conduz pelas mãos
um crepúsculo saído do ventre fundo de Deus
e abre um caminho novo em direção à aurora
que se fez carne a partir de um bocejo.

O Juízo Final comparece em pessoa ao julgamento de Deus
diante do pântano, das trevas e do abismo
que foram a matéria-prima de que ele fez o homem.

O Juízo Final espreme o olho de Deus
que expele inéditos pombos da morte
fatais e devoradores
e frios como cubos de gelo.

O Juízo Final pedala
embora rupestre
uma roca
e tece o destino dos justos
diante de um Deus que pede um copo d’água
vendo que toda  sua obra resultou num deserto.

O Juízo Final, de corpo e alma,
celebra a irreverência dos vermes,
que não se deixam abater,
ao contrário, 
se reproduzem com apetite voraz,
vendo a morte definitiva de Deus e do homem.

O Juízo Final põe fim à obra prematura de Deus
e lava as mãos na fonte luminosa
que brotou da maçã triangular de seu olho.


3 comentários:

  1. Que belo! O juízo final surge como tristeza inevitável. Parabéns, poeta!

    ResponderExcluir
  2. Que belo! O juízo final surge como tristeza inevitável. Parabéns, poeta!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sim...E aí? O Juízo Final em pessoa seria apenas um pesadelo? Obrigado pela visita.

      Excluir