18/09/2020

CONSIDERAÇÕES A PROPÓSITO DO VERSO ENQUANTO PÃO DOMESTICADO

             

CONSIDERAÇÕES A PROPÓSITO 

DO VERSO ENQUANTO PÃO DOMESTICADO

 

            Geraldo Reis


I


Eu não devia ter sangrado os porcos

antes de arrancar o couro dos lagartos,

 

antes de embolsar 30 moedas por ter dissimulado o verbo

e espalhado estranho rito em territórios minados,

 

antes de orar sobre os corpos mutilados dos menestréis 

vendidos como escravos para longínquas paragens,

 

antes de traduzir a gargalhada de um mioma

que fingindo ser palavra andou comendo o verso,

 

antes de chorar sobre  a diáspora 

de uma figura de estilo perdida entre sucatas,

atrás de uns óculos antigos 

envelhecida e escorraçada de entre novos inventores,

 

antes de repreender os ares ríspidos da véspera

que sendo deusa carregava no ventre o dia novo,

 

antes de embaralhar os ventos 

soprados no outono de um perdido campanário, 

 

antes de ouvir o sino plantado no alto de uma montanha 

que já não vale nada porque foi tomada de assalto.


II

 

Eu não devia ter sangrado os porcos

antes de embrulhar a paciência 

das enguias encobertas de lama,

 

antes de atravessar definitivamente 

a porta fechada pelos poetas mortos

atraídos pelo brilho milenar dos olhos da serpente,

 

antes de acionar à toda os motores da lancha costeira 

e disparar o  laser impiedoso, inclemente,

sobre os sorrateiros invasores,

 

antes de varrer com trezentos faróis incendiados

o negrume da noite acorrentado à tempestade,

 

antes de acender a pira improvisada de azeite 

plantada na intimidade do poço 

para arder ali, ao sul das homilias

pelo menos durante a próxima eternidade

quase para sempre

porque levara um verso ao suicídio.

 

III

 

Eu não devia ter sangrado os porcos

antes de introduzir um salmo 

na memória da semente enlouquecida,

 

antes de extrair um resultado improvável

e de todo inesperado

da equação impossível 

que seria a salvação do verbo silenciado,

 

antes de modular a espinha dorsal 

dos ventos soprados pela garganta dos galos 

para que do canto brotasse um algarismo,

 

antes de repreender severamente 

o incenso que insulta a paciência de Deus 

e leva ao desespero a veste pobre dos abades.

 

IV

 

Eu não devia ter sangrado os porcos

antes de destruir a entrada 

dos templos e dos parques incendiados, 

 

antes de apagar a marca de um ‘beijo de judas’ 

que passava despercebido, 

disfarçado sob a pele de búzios enganadores 

e adorados pelos artófagos, 

 

antes de interpretar o canto das carpideiras sob a chuva,                  

canto que vem de longe e não comove mais a imensidão do bosque,

 

antes de desvendar o trigo 

que descansa no colo de uma semente, 

ao agasalho de enternecido sentimento materno,

 

antes de entender que a dimensão humana tem a ver, 

e muito, com a resignação de um papel que pensávamos indignado, 

papel que ignora, por dever de ofício, 

todo assédio,  

papel que embrulha, por indiferente, 

o substancial teor de sódio do pão caseiro que o devora.

 

V

 

Eu não devia ter sangrado os porcos

antes de decifrar o artifício de voo das aves,

 

antes de dissolver o grito 

intumescido no raciocínio das enguias 

 

antes de encerrar a procura 

de corpos talvez adormecidos sob os campos ceifados,

 

antes de apascentar os frutos

tornados de uma ressurreição à esquerda dos abismos,

 

antes de ordenhar as porcas que segundo os profetas

cantariam com gargantas de alumínio um canto tênue, 

clamando pela manhã de um verso suspenso na clave de sol,

 

antes de saber se os dromedários 

foram eleitos também para a festa,  

ou tão somente para o sacrifício,

 

antes de abater os corifeus em comício

no conflito de um verbo  feito pão,

entregue a todos como presente de uma antiguidade rupestre 

distanciada de toda humana caligrafia.                                                              

VI

 

Eu não devia ter sangrado os porcos

antes de esquadrinhar a ceia empiricamente,

 

antes de traduzir, por encomenda,

os versos que não chegaram ao seu destino como livros

versos que embora prontos 

não puderam ser escritos, 

e desapareceram, perdidos de seus improváveis autores  

e escaparam, assim, da mesa faminta de iludidos destinatários, 

 

antes de doar à terra um exército de palavras 

envelhecidas e derrotadas, 

em verdade recém-saídas 

dos compêndios da história antiga de mim mesmo,

reproduzindo a história pessoal de todo ser humano,

desde o primeiro habitante das águas e do subsolo.

 

VII

                                                        

Eu não devia ter sangrados os porcos 

antes de chover definitivamente sobre os plátanos,

antes traduzir o zumbido dos insetos 

que chegam atrasados para a festa 

e exortam a paisagem 

sangrando como desconhecido mercúrio,

enfeitados de fórmulas 

e de flechas 

tão somente molhadas de arco-íris, 

mas que se acreditavam guardadas 

no interior azul de um sacrário

de onde seriam disparadas 

como verdadeiro pão humanizado.

 

VIII

 

Eu não devia ter sangrado os porcos

antes de entender que a dimensão interior do homem 

tem a ver, e muito,  

com a dimensão estética desse pão caseiro,

 

antes de traduzir a dor estética de simples papel

que recebe o verso unificado e o multiplica 

e o abençoa o absolve,

e embrulha e entrega a todos,

repartindo,

por dever de ofício,

ainda aceso, 

feito brasa,

como se fosse verdadeiro pão,

embora rústico,

o pão da misericórdia,

o próprio corpo de Deus 

    em mim domesticado.                                      


Geraldo Reis

Belo Horizonte, 18 e 19 de fevereiro de 2020.                                                                                                

 

2 comentários:

  1. Nada deveria ser feito antes de nos deleitarmos com as proposições deste poema de Geraldo Reis que teve seu berço encravado entre as montanhas na dourada Mariana, dasMinas Gerais.
    "antes de embaralhar os ventos

    soprados no outono de um perdido campanário,

    antes de ouvir o sino plantado no alto

    de uma montanha que já não vale nada

    porque foi tomada de assalto."
    antes de repreender os ares ríspidos da véspera,

    que sendo deusa carregava no ventre o dia novo,

    "antes de embaralhar os ventos

    soprados no outono de um perdido campanário,

    antes de ouvir o sino plantado no alto

    de uma montanha que já não vale nada

    porque foi tomada de assalto."
    Parabéns, me encantou!


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    1. Agradeço, de coração, sua visita, Martha. Seja bem vinda. Sempre. Somos, irmãos. Volte mais vezes. Combinado?

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