28/09/2023

MENSAGEM ÚMIDA ROUBADA ÀS COTOVIAS


MENSAGEM ÚMIDA 

ROUBADA ÀS COTOVIAS

 

                              Geraldo Reis

 

Talvez não fosse ainda 

aquela, a derradeira noite,

 

talvez não fosse aquela 

a derradeira noite ainda.

 

Era preciso, pois,

estar atento ao som das coivaras

trazidas de outros mundos girando, 

de outras esferas,

 

atento à dolorosa canção das águas,

ao atormentado outono das tíbias

em que o vento sopra impiedoso,

tornando a noite mais noite

e o negro da noite mais negro

e mais dissonante ainda

a enferrujada cor da paisagem.

 

Era preciso estar atento ao cimento

que eternizara a sudoeste os dinossauros.

 

Talvez não fosse aquela

a derradeira noite ainda.

 

Talvez não fosse ainda

      aquela

a derradeira noite.

 

Ficaram para trás

bares, barrancos, pontes,  impérios,

palácios e mausoléus.

 

Ficaram para trás

bailes de máscara, 

bailes de gala

e a casa de óperas 

            que já esteve habitada por morcegos.

 

Ficaram para trás

antigos natais, 

festas de viradas-do-ano,

crianças rapidamente envelhecidas 

        e brinquedos quebrados.

 

Ficaram para trás

rezas e Cantos de Primeira Comunhão,

a Sacristia onde teriam aparecido 

pela primeira vez os versos

agarrados como almas à sobrepeliz do abade,

e de um certo pároco, 

anterior aos atuais hermeneutas do breviário.

 

Ficaram para trás.

 

Mas, a aurora insiste amordaçada,

repetindo em mim 

o nome que não saberei pronunciar,

nome que pode ser o da mulher que me encantou 

quando me encontrou num livro que não li,

            não vi, não sonhei.

 

Me encontrando num verso a decifrar,

ela tenta inventar o meu rosto.

 

O sono cobre por inteiro

seu corpo enrijecido,

e ela dorme.

 

Dorme, e ainda ontem

cantava uma canção me chamando.

 

Cantou no amanhecer dos grotões,

cantou nas vilas,

cantou nos bosques.

 

Cantou nas filas que amanhecem longas

à porta de hospitais improvisados,

porque eu poderia estar ali doente.

 

Cantou  à beira dos lagos e dos rios

onde eu poderia estar dormindo,  

cantou para que eu surgisse glorioso,

viesse caminhando sobre as águas e

      mostrasse meu rosto.

 

Cantou diante dos muros

que enlouquecem o interior das pedras 

            e rasgam a paisagem.

 

Cantou porque talvez eu estivesse

dormindo sob uma coivara de versos e

                            escutando o canto 

ressurgisse de uma lápide incendiada.

 

Cantou para que a matilha,

me procurando, latisse mais alto,

e, farejando longe, me encontrasse.

 

Cantou para que o canto

energizando os ponteiros de 

                    modernos instrumentos de busca,

atravessando os ares e a abóbada celeste,  

fosse além do cosmos e

durando mais do que a eternidade,

me encontrasse.

 

Cantou à porta de um eremitério,

onde supostamente estariam minhas vestes.

 

Cantando,

ela era mais clara 

do que o amanhecer mais claro das ravinas.

 

Numa curva do tempo 

é que nos perdemos um do outro

e cada um perdeu-se    

         de si mesmo, quando um sono 

                maior do que o universo

passou por nós 

entre buzinas que descansaram no ocaso.

 

Depois de um quase-amanhecer 

        é que nos perdemos

e esse túnel é, 

    todo ele, 

            um desencontro.

 

No esôfago desse túnel, viajamos

para a noite permanente, que a tudo devora,

e para que o amor se diluísse na sombra.

 

Mas, talvez não seja essa noite 

a mesma em que nos perdemos

essa noite, talvez não seja aquela,

e talvez não seja a derradeira

                nem permanente.

 

Era preciso estar atento à cantoria dos terreiros

e ao canto dos galos ressuscitando dias antigos

para que do estrelado canto surgisse o meu rosto

e para que de um risco de luz

da escuridão brotasse a minha face macerada.

 

De dentro dos búzios, ela ainda me acena.

De uma esquina improvisada por duendes,

resistindo ao arrebatamento indesejado,

é que me chama.

 

Em algum lugar do mundo,

me chama,

enquanto buracos negros vão se abrindo

sob abismos plantados 

na velocidade de desesperados postes,

que, de sorrateiros,  

como pontos de fuga,

já ficaram distantes.

 

Será preciso estar atento pois

ao assovio dos ventos varrendo os corredores 

        dos madrigais, e me chamando,  

aos vendavais que levam para longe

a mensagem úmida roubada às cotovias.

 

Estando atento ao canto dos terreiros

e às dobras ocultas de cobiçados búzios

será possível extrair do amálgama do canto

a voz dessa mulher que me procura.

 

Será  preciso estar atento

e cego    

e surdo 

e mudo a tudo,

 

voltado apenas para os sinais desse chamado

para 

escutando 

entender que esse morrer distante 

em algum lugar do mundo, a essa hora,

é o quadro mais impiedoso que alguém pode pintar.

 

A cantoria das aves de agouro já rasgou minhas teses,

meus versos,

minha roupa de domingo e minha carne:


Está completamente nu meu peito rubro.

 

Minha história de homem 

que haveria de desvendar esse chamado

termina com o barulho de um corpo que sucumbe

sob a derradeira pá de cal lançada sobre um monturo

onde foi deixada a urna em que ela dorme.

 

Uma desesperada, indesejada,

furiosa e derradeira pá de cal

cobre a manhã,

  

e o futuro do pretérito

enfrentando o Onipresente

insiste  

s e r e n a m e n t e

em renascer 

da grama de veludo matizada de sol.

 

E por isso,

mais por isso, que


talvez não seja esta 

ainda a derradeira noite.


Talvez não seja esta 

a derradeira noite ainda.

 

               Geraldo Reis

 

               BH. 25 e 26 /04/2021

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