26/02/2024

A PROCISSÃO ACESA EM GUAYAQUIL

 

A PROCISSÃO ACESA EM GUAYAQUIL

 

(Por enquanto,

a procissão acesa 

apenas 

excita a escuridão do barco...

por enquanto.)

 

Geraldo Reis

 

A procissão excita 

a escuridão do barco encontrado 

entre os pertences-de-bolso do afogado.

 

A procissão acesa pulsa

no interior da praia iluminada quando

um exército de pescadores mortos 

se recorta ao longe

e grita a plenos pulmões 

o nome do afogado.

 

A procissão acesa para 

de repente quando

um relógio se retrai no temporal cifrado

e recolhe frações desse vitral que franze

um solidéu de areia nos olhos do afogado.

 

A procissão acesa lavra 

um testamento quando

esse resumo de um tempo 

interrompido rasga

numa cartilha de sangue  

a terra

prometida no bolso do afogado.

 

É como se o vento 

soprado de outras horas

tocando as velas sazonais  

do barco o mastigasse

com os dentes hirtos de areia 

no deserto febril de bolso do afogado.

 

É como se o verbo 

soprado de outros ermos 

vencendo as iras do barco o engolisse

com a garganta enlouquecida 

de uma dama que seria 

o menor enigma de bolso do afogado.


A procissão acesa

com intenções de fuga se diverte 

e guarda

pernas e braços aquáticos encontrados

entre os pertences-de-bolso do afogado.

 

E agora que tudo se recolhe,

as aspas arquejando,

um rebanho de luzes empurra para longe

um carrossel incendiado quando

entre preces-de-bolso do afogado.

 

Já distanciada a procissão gorjeia

um canto em preto-e-branco espaventado

e atravessa o estômago de areia

do relógio de bolso do afogado.

 

O primeiro sino de luz

na manhã ruborizada

abre repiques de amém

na praia abandonada quando

lacrimejaram Deus no bolso do afogado.

 

A fímbria em verde-e-branco,

um tanto azul-e-amarela,

do tempo entronizado em cantos mil

acorda em posição de sentinela...

 

A procissão excita 

a escuridão do barco em aquarela

rumo a nova madrugada em Guayaquil


e grita a plenos pulmões 

com a garganta de um relógio 

        enlouquecido,

        em chamas 

no interior da catedral que chama,

por entre os dentes de Deus, 

o nome do afogado. 


A procissão excita para sempre 

a escuridão do barco 

ancorado na cartilha de sangue

    entre enigmas e achados 

        entre achados e perdidos

            entre achados incolores 

                e invisíveis alaridos

sobretudo entre duendes 

enlouquecidos

e tudo que talvez não seja

ou nunca tenha sido,

de fato, 

um pertence-de-bolso do afogado.

 

Talvez a mancha de areia 

no pulmão do tempo 

seja uma fisgada de luz,

terrível como relâmpago,

no coração de areia dos homens

no coração de areia do afogado.  


Mas, enfim...

 

Seja tudo em nome desse canto atravessado

na garganta varonil do tempo entronizado.

 

Por enquanto 

a procissão acesa 

apenas 

excita a escuridão do barco.

 

Que do templo encomendado  

em cantos mil,

venha a nós o vosso reino,  

com removedores  

de manchas   

que apaguem

abusos ao Arpoador  

e que renovem

nossa carne de areia morta em Guayaquil. 

 

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Nota: Guayaquil, oficialmente, Santiago de Guayaquil, 

é a maior cidade do Equador. 

E é, também, o principal porto do país. 


                    Belo Horizonte/MG - Outubro/2023.

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