28/09/2023


 

OS Dias do Amor

Os Dias do Amor

Para ajudar a preparar a semana dos afectos na nossa escola, escolhemos para livro da semana estes Dias do Amor, uma colectânea de poemas organizada por Inês Ramos: 365 vozes que se erguem em 365 poemas de amor em todas as formas, em várias nacionalidades, um para cada dia do ano. Desde Shakespeare, Hölderlin, Edgar Allan Poe, entre outros, a poetas portugueses contemporâneos como Ramos Rosa, Vasco Graça-Moura, Sérgio Godinho, Alice Vieira, Geraldo Reis, Paulinho Assunção entre outros, unidos para celebrar o Amor, em Portugal e no mundo.
Pequisando, vi que a antologia está com a 3ª Edição esgotada. 

--- Encontrei e cuido de inserir a capa  3ª Edição) --- 

CANÇÃO QUE, ME CHAMANDO, NÃO ENVELHECE

CANÇÃO QUE, 

        ME CHAMANDO,  

            NÃO ENVELHECE

 

                              Geraldo Reis

 

Talvez não fosse ainda aquela a derradeira noite,

talvez não fosse aquela a derradeira noite ainda.

 

Era preciso, pois,

estar atento ao som das coivaras

trazidas de outros mundos girando, de outras esferas.

 

Atento à dolorosa canção das águas,

ao atormentado outono das tíbias

em que o vento sopra impiedoso,

tornando a noite mais noite

e o negro da noite mais negro

e mais dissonante ainda

a enferrujada cor da paisagem.

 

Era preciso estar atento ao cimento

que eternizara a sudoeste os dinossauros.

 

Talvez não fosse aquela

a derradeira noite ainda.

 

Talvez não fosse ainda

      aquela

a derradeira noite.

 

Ficaram para trás

bares, barrancos, pontes,  impérios,

palácios e mausoléus.

 

Ficaram para trás

bailes de máscara, 

bailes de gala

e a casa de óperas que já esteve habitada por morcegos.

 

Ficaram para trás

antigos natais, 

festas de viradas-do-ano,

crianças rapidamente envelhecidas e brinquedos quebrados.

 

Ficaram para trás

rezas e cantos da Primeira Comunhão,

a Sacristia onde teriam aparecido pela primeira vez 

os versos agarrados como almas à sobrepeliz do abade,

e de um certo pároco, anterior aos atuais hermeneutas.

 

Ficaram para trás.

 

Mas, a aurora insiste amordaçada,

repetindo em mim o nome que não saberei pronunciar,

nome que pode ser o da mulher que me encontrou 

num livro que não li,

não vi, não sonhei.

 

Me encontrando num verso a decifrar

Ela tenta inventar o meu rosto.

 

O sono cobre por inteiro

seu corpo enrijecido,

e ela dorme.

 

Dorme, e ainda ontem

cantava uma canção me chamando.

 

Cantou no amanhecer dos grotões,

cantou nas vilas,

cantou nos bosques.

 

Cantou nas filas que amanhecem longas

à porta de hospitais improvisados,

porque eu poderia estar ali doente.

 

Cantou  à beira dos lagos e dos rios

onde eu poderia estar dormindo,  

cantou para que eu surgisse glorioso,

viesse caminhando sobre as águas e

      mostrasse meu rosto.

 

Cantou diante dos muros

que enlouquecem o interior das pedras 

            e rasgam a paisagem.

 

Cantou porque talvez eu estivesse

dormindo sob uma coivara de versos

e escutando o canto 

ressurgisse de uma lápide incendiada.

 

Cantou para que a matilha,

me procurando, latisse mais alto,

e farejando longe me encontrasse.

 

Cantou para que o canto

energizando os ponteiros de modernos instrumentos de busca,

atravessando os ares e a abóbada celeste,  

fosse além do cosmos e

durando mais do que a eternidade,

me encontrasse.

 

Cantou à porta de um eremitério,

onde supostamente estariam minhas vestes.

 

Cantando

ela era mais clara do que o amanhecer mais claro das ravinas.

 

Numa curva do tempo é que nos perdemos um do outro

e cada um perdeu-se de si mesmo, quando um sono 

maior do que o universo

passou por nós entre buzinas que descansaram no ocaso.

 

Depois de um quase-amanhecer é que nos perdemos

e esse túnel é, todo ele, um desencontro.

 

No esôfago desse túnel, viajamos

para a noite permanente que a tudo devora 

se diluísse na sombra.

 

Mas talvez não seja essa noite 

a mesma em que nos perdemos

essa noite talvez não seja aquela

e talvez não seja derradeira

nem permanente.

 

Era preciso estar atento à cantoria dos terreiros

e ao canto dos galos ressuscitando dias antigos

para que do estrelado canto surgisse o meu rosto

e para que de um risco de luz

da escuridão brotasse a minha face macerada.

 

De dentro dos búzios, ela ainda me acena.

De uma esquina improvisada por duendes,

resistindo ao arrebatamento indesejado,

é que me chama.

 

Em algum lugar do mundo,

me chama,

enquanto buracos negros vão se abrindo

sob abismos plantados 

na velocidade de desesperados postes,

que, de sorrateiros,  

como pontos de fuga,

já ficaram distantes.

 

Será preciso estar atento pois

ao assovio dos ventos varrendo os corredores 

    dos madrigais, e me chamando,  

aos vendavais que levam para longe

a mensagem úmida roubada às cotovias.

 

Estando atento ao canto dos terreiros

e às dobras ocultas de cobiçados búzios

será possível extrair do amálgama do canto

a voz dessa mulher que me procura.

 

Será  preciso estar atento

e cego e surdo e mudo a tudo,

voltado apenas para os sinais desse chamado

para escutando entender

que esse morrer distante 

em algum lugar do mundo,

        a essa hora, 

é o quadro mais impiedoso que alguém pode pintar.

 

A cantoria das aves de agouro já rasgou minhas teses,

meus versos,  minha roupa de domingo e minha carne:

Está completamente nu meu peito rubro.

 

Minha história de homem 

que haveria de desvendar esse chamado

termina com o barulho de um corpo que sucumbe

sob a derradeira pá de cal lançada sobre um monturo

onde foi deixada a urna em que ela dorme.

 

Uma desesperada, indesejada,

furiosa e derradeira pá de cal

cobre a manhã,

  

e o futuro do pretérito

enfrentando o Onipresente

insiste  

s e r e n a m e n t e

em renascer 

da grama de veludo matizada de sol.

 

E por isso,

mais por isso, 


talvez não seja esta 

ainda 

a derradeira noite.


Talvez não seja esta 

a derradeira noite ainda.

                               Geraldo Reis

                               BH. 25 e 26 /04/2021

POESIA NA ESTANTE

  • A CONTINGÊNCIA DO SER - Célio César Paduani
  • A INSÔNIA DOS GRILOS - Jorge Tufic
  • A RETÓRICA DO SILÊNCIO - Gilberto Mendonça Teles
  • A ROSA DO POVO - Carlos Drummond de Andrade
  • A SOLEIRA E O SÉCULO - Iacyr Anderson Freitas
  • A VACA E O HIPOGRIFO - Mário Quintana
  • AINDA O SOL - Gabriel Bicalho
  • ARTE DE ARMAR - Gilberto Mendonça Teles
  • ARTEFATOS DE AREIA - Francisco Carvalho
  • AS IMPUREZAS DO BRANCO - Carlos Drummond de Andrade
  • BARCA DOS SENTIDOS - Francisco Carvalho
  • BARULHOS - Ferreira Gullar
  • BAÚ DE ESPANTO - Mário Quintana
  • BICHO PAPEL - Régis Bonvicino
  • CADERNO H - Mário Quintana
  • CANTATA - Yeda Prates Bernis
  • CANTIGA DE ADORMECER TAMANDUÁ E ACORDAR UNS HOMENS - Pascoal Motta
  • CANTO E PALAVRA - Affonso Romano de Sant'Anna
  • CARAVELA - REDESCOBRIMENTOS - Gabriel Bicalho
  • CENTRAL POÉTICA - Lêdo Ivo
  • CONVERSA CLARA - Domingos Pelegrini Jr.
  • CORPO PORTÁTIL - Fernando Fiorese
  • CRIME NA FLORA - Ferreira Gullar
  • CRIME NA FLORA - Ferreira Gullar
  • CRISTAL DO TEMPO & A COR DO INVISíVEL - Maria do Rosário Teles do invisível
  • DIÁRIO DO MUDO - Paulinho Assunção
  • DICIONÁRIO MÍNIMO - Fernando Fábio Fiorese Furtado
  • DUAS ÁGUAS - João Cabral de Melo Neto
  • ELEGIA DO PAÍS DAS GERAIS - Dantas Motta
  • FINIS TERRA - Lêdo Ivo
  • GUARDANAPOS PINTADOS COM VINHO - Jorge Tufic
  • HORA ABERTA - Gilberto Mendonça Teles
  • INVENÇÃO DE ORFEU - Jorge de Lima
  • LAVRÁRIO - Márcio Almeida
  • LÍRIOS POSSÍVEIS - Gabriel Bicalho
  • LIRISMO RURAL (O Sereno do Cerrado) - Gilberto Mendonça Teles
  • MEL PERVERSO - Márcio Almeida
  • MELHORES POEMAS - Paulo Leminski
  • O ESTRANHO CANTO DO PÁSSARO - Célio César Paduani
  • O ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA - Cecília Meirelles
  • O SONO PROVISÓRIO - Antônio Barreto
  • O TERRA A TERRA DA LINGUAGEM - Gilberto Mendonça Teles
  • OS MELHORES POEMAS DE FERREIRA GULLAR - Ferreira Gullar
  • PASTO DE PEDRA - Bueno de Rivera
  • PLURAL DE NUVENS - Gilberto Mendonça Teles
  • POEMA SUJO - Ferreira Gullar
  • POEMAS REUNIDOS - Gilberto Mendonça Teles
  • POEMAS REUNIDOS - João Cabral de Melo Neto
  • POESIA REUNIDA - Jorge Tufic
  • RETRATO DE MÃE - Jorge Tufic
  • VER DE BOI - Pascoal Motta
  • VESÂNIA - Márcio Almeida
  • VIANDANTE - Yeda Prates Bernis