
Os Dias do Amor
Poemas de Geraldo Reis & Convidados (... e eu me sentia, mais por isso, irmão das águas, o irmão menor de todos os rios do mundo - in JOGAR BRIGDE)
02/02/2009 in Livro da semana, Livros, Novidades, Semana dos afectos | Tags: Inês Ramos, Os Dias do Amor
Os Dias do Amor
CANÇÃO
QUE ME
CHAMANDO,
NÃO ENVELHECE
OU
MENSAGEM ÚMIDA
ROUBADA ÀS COTOVIAS
Geraldo Reis
Talvez não fosse ainda
aquela, a derradeira noite,
talvez não fosse aquela
a derradeira noite ainda.
Era preciso, pois,
estar atento ao som das coivaras
trazidas de outros mundos girando,
de outras esferas,
atento à dolorosa canção das águas,
ao atormentado outono das tíbias
em que o vento sopra impiedoso,
tornando a noite mais noite
e o negro da noite mais negro
e mais dissonante ainda
a enferrujada cor da paisagem.
Era preciso estar atento ao cimento
que eternizara a sudoeste os dinossauros.
Talvez não fosse aquela
a derradeira noite ainda.
Talvez não fosse ainda
aquela
a derradeira noite.
Ficaram para trás
bares, barrancos, pontes, impérios,
palácios e mausoléus.
Ficaram para trás
bailes de máscara,
bailes de gala
e a casa de óperas
que já esteve habitada por morcegos.
Ficaram para trás
antigos natais,
festas de viradas-do-ano,
crianças rapidamente envelhecidas
e brinquedos quebrados.
Ficaram para trás
rezas e Cantos de Primeira Comunhão,
a Sacristia onde teriam aparecido
pela primeira vez os versos
agarrados como almas à sobrepeliz do abade,
e de um certo pároco,
anterior aos atuais hermeneutas do breviário.
Ficaram para trás.
Mas, a aurora insiste amordaçada,
repetindo em mim
o nome que não saberei pronunciar,
nome que pode ser o da mulher que me encantou
quando me encontrou num livro que não li,
não vi, não sonhei.
Me encontrando num verso a decifrar,
ela tenta inventar o meu rosto.
O sono cobre por inteiro
seu corpo enrijecido,
e ela dorme.
Dorme, e ainda ontem
cantava uma canção me chamando.
Cantou no amanhecer dos grotões,
cantou nas vilas,
cantou nos bosques.
Cantou nas filas que amanhecem longas
à porta de hospitais improvisados,
porque eu poderia estar ali doente.
Cantou à beira dos lagos e dos rios
onde eu poderia estar dormindo,
cantou para que eu surgisse glorioso,
viesse caminhando sobre as águas e
mostrasse meu rosto.
Cantou diante dos muros
que enlouquecem o interior das pedras
e rasgam a paisagem.
Cantou porque talvez eu estivesse
dormindo sob uma coivara de versos e
escutando o canto
ressurgisse de uma lápide incendiada.
Cantou para que a matilha,
me
procurando, latisse mais alto,
e, farejando longe, me encontrasse.
Cantou para que o canto
energizando os ponteiros de
modernos instrumentos de busca,
atravessando os ares e a abóbada celeste,
fosse além do cosmos e
durando mais do que a eternidade,
me encontrasse.
Cantou à porta de um eremitério,
onde supostamente estariam minhas vestes.
Cantando,
ela era mais clara
do que o amanhecer mais claro das ravinas.
Numa curva do tempo
é que nos perdemos um do outro
e cada um perdeu-se
de si mesmo, quando um sono
maior do que o universo
passou por nós
entre buzinas que descansaram no ocaso.
Depois de um quase-amanhecer
é que nos perdemos
e esse túnel é,
todo ele,
um desencontro.
No esôfago desse túnel, viajamos
para a noite permanente, que a tudo
devora,
e para que o amor se diluísse na sombra.
Mas, talvez não seja essa noite
a mesma em que nos perdemos
essa noite, talvez não seja aquela,
e talvez não seja a derradeira
nem permanente.
Era preciso estar atento à cantoria dos terreiros
e ao canto dos galos ressuscitando dias antigos
para que do estrelado canto surgisse o meu rosto
e para que de um risco de luz
da escuridão brotasse a minha face macerada.
De dentro dos búzios, ela ainda me acena.
De uma esquina improvisada por duendes,
resistindo ao arrebatamento indesejado,
é que me chama.
Em algum lugar do mundo,
me chama,
enquanto buracos negros vão se abrindo
sob abismos plantados
na velocidade de desesperados postes,
que, de sorrateiros,
como pontos de fuga,
já ficaram distantes.
Será preciso estar atento pois
ao assovio dos ventos varrendo os corredores
dos madrigais, e me chamando,
aos vendavais que levam para longe
a mensagem úmida roubada às cotovias.
Estando atento ao canto dos terreiros
e às dobras ocultas de cobiçados búzios
será possível extrair do amálgama do canto
a voz dessa mulher que me procura.
Será preciso estar atento
e cego
e surdo
e mudo a tudo,
voltado apenas para os sinais desse chamado
para
escutando
entender que esse morrer distante
em algum
lugar do mundo, a essa hora,
é o quadro mais impiedoso que alguém pode pintar.
A cantoria das aves de agouro já rasgou minhas teses,
meus versos,
minha roupa de domingo e minha carne:
Está completamente nu meu peito rubro.
Minha história de homem
que haveria de desvendar esse chamado
termina com o barulho de um corpo que sucumbe
sob a derradeira pá de cal lançada sobre um monturo
onde foi deixada a urna em que ela dorme.
Uma desesperada, indesejada,
furiosa e derradeira pá de cal
cobre a manhã,
e o futuro do pretérito
enfrentando o Onipresente
insiste
s e r e n a m e n t e
em renascer
da grama de veludo matizada de sol.
E por isso,
mais por isso, que
talvez não seja esta
ainda a derradeira noite.
Talvez não seja esta
a derradeira noite ainda.
Geraldo Reis
BH. 25 e 26 /04/2021