CONSIDERAÇÕES A PROPÓSITO
DO VERSO ENQUANTO PÃO DOMESTICADO
Geraldo Reis
Eu não devia ter sangrado
os porcos
antes de arrancar o couro dos lagartos,
antes
de embolsar 30 moedas por ter dissimulado o verbo
e espalhado estranho rito em territórios minados,
antes
de orar sobre os corpos mutilados dos menestréis
vendidos como escravos para longínquas paragens,
antes de traduzir a gargalhada de um mioma
que fingindo ser palavra andou comendo o verso,
antes de chorar sobre a diáspora
de uma figura de estilo atrás de uns óculos antigos
perdida entre sucatas,
envelhecida e escorraçada de entre novos inventores,
antes
de repreender os ares ríspidos da véspera
que sendo deusa carregava no ventre o dia novo,
antes de embaralhar os ventos
soprados no outono de um perdido campanário,
antes de ouvir o sino plantado no alto de uma montanha
que já não vale nada porque foi tomada de assalto.
II
Eu não devia ter sangrado
os porcos
antes de embrulhar a paciência
das enguias encobertas de lama,
antes de atravessar definitivamente
a porta fechada pelos poetas mortos
atraídos pelo brilho milenar dos olhos da serpente,
antes de acionar à toda os motores da lancha costeira
e disparar o laser impiedoso, inclemente,
sobre os sorrateiros invasores,
antes
de varrer com trezentos faróis incendiados
o negrume da noite acorrentado à tempestade,
antes de acender a pira improvisada de azeite
plantada na intimidade do poço
para arder ali, ao sul das homilias
pelo menos durante a próxima eternidade
quase para sempre
porque
levara um verso ao suicídio.
III
Eu não devia ter sangrado
os porcos
antes de introduzir um salmo
na memória da semente enlouquecida,
antes de extrair um resultado improvável
e de todo inesperado
da equação impossível
que seria a salvação do verbo silenciado,
antes de modular a espinha dorsal
dos ventos soprados pela garganta dos galos
para que do canto brotasse um algarismo,
antes de repreender severamente
o incenso que insulta a paciência de Deus
e leva ao
desespero a veste pobre dos abades.
IV
Eu não devia
ter sangrado os porcos
antes de destruir a entrada
dos templos e dos parques incendiados,
antes de apagar a marca de um ‘beijo de judas’
que passava despercebido,
disfarçado sob a pele de búzios enganadores
e adorados pelos artófagos,
antes
de interpretar o canto das carpideiras sob a chuva,
canto que vem de longe e não comove mais a imensidão do bosque,
antes de desvendar o trigo
que descansa no colo de uma semente,
ao agasalho de enternecido sentimento materno,
antes de entender que a dimensão humana tem a ver,
e muito, com a resignação de um papel que pensávamos indignado,
papel que ignora, por dever de ofício,
todo assédio,
papel que embrulha, por indiferente,
o substancial teor de sódio do pão caseiro que o devora.
V
Eu não devia ter sangrado
os porcos
antes de decifrar o artifício de voo das aves,
antes de dissolver o grito
intumescido no raciocínio das enguias
antes de encerrar a procura
de corpos talvez adormecidos sob os campos ceifados,
antes
de apascentar os frutos
tornados de uma ressurreição à esquerda dos abismos,
antes de ordenhar as porcas que segundo os profetas
cantariam com gargantas de alumínio um canto tênue,
clamando pela manhã de um verso suspenso na clave de sol,
antes de saber se os dromedários
foram eleitos também para a festa,
ou tão somente para o sacrifício,
antes de abater os corifeus em comício
no conflito de um verbo feito pão,
entregue a todos como presente de uma antiguidade rupestre
distanciada de toda humana caligrafia.
VI
Eu não devia ter sangrado
os porcos
antes de esquadrinhar a ceia empiricamente,
antes de traduzir, por encomenda,
os versos que não chegaram ao seu destino como livros
versos que embora prontos
não puderam ser escritos,
e desapareceram, perdidos de seus improváveis autores
e escaparam, assim, da mesa faminta de iludidos destinatários,
antes de doar à terra um exército de palavras
envelhecidas e derrotadas,
em verdade recém-saídas
dos compêndios da história antiga de mim mesmo,
reproduzindo a história pessoal de todo ser humano,
desde o primeiro habitante das águas e do subsolo.
VII
Eu não devia ter sangrados os porcos
antes de chover definitivamente sobre os plátanos,
antes traduzir o zumbido dos insetos
que chegam atrasados para a festa
e exortam a paisagem
sangrando como desconhecido mercúrio,
enfeitados de fórmulas
e de flechas
tão somente molhadas de arco-íris,
mas que se acreditavam guardadas
no interior azul de um sacrário
de onde seriam disparadas
como verdadeiro pão humanizado.
VIII
Eu não devia ter sangrado os
porcos
antes de entender que a dimensão interior do homem
tem a ver, e muito,
com a dimensão estética desse pão caseiro,
antes de traduzir a dor estética de simples papel
que recebe o verso unificado e o multiplica
e o abençoa e o absolve,
e embrulha e entrega a todos,
repartindo,
por dever de ofício,
ainda aceso,
feito brasa,
como se fosse verdadeiro pão,
embora rústico,
o pão da misericórdia
o próprio corpo de Deus em mim domesticado.
Geraldo Reis
Belo Horizonte, 18 e 19 de fevereiro de 2020.