08/04/2023

DO POEMA COMO FÁBULA DISPERSA


DO POEMA

COMO FÁBULA DISPERSA 

 

          Geraldo Reis   


Por primeiro 

a José Marcelino de Souza Filho, 

poeta e menino,

vão esses versos a esmo, 


e talvez, 
 
depois, 

a mim mesmo.


Aos dois, 

fadados ao mesmo destino,

dedico / dedicamos 


como primeira fábula dispersa.



Essa pedra respira,

(diz o menino)

no bolo caseiro,

 

o outro pergunta: 

onde? 

 

O primeiro responde:

No lombo traseiro 

do burro do conde.

 

Essa pedra respira 

(prosseguem)

e trabalha 

e transpira. 

 

(Viva a festa

Viva a experimentação) 


É pedra que rola 

e parece ter cheiro  

de pedra mesmo

de campo e cidade.

 

É pedra que embolada 

tem cheiro de mato 

de tudo e de nada.

 

Cheiro espesso, 

molhado de areia,

cheiro brilhante e saboroso

cheiro branco e pegajoso 

de cavalos mancos

a galope na rua estreita.


Cheiro da mistura 

que promete ser um quadro 

pintado com palavras no barranco.


Cheiro que escorre na parede escura, 

dos olhos de alguém que prepara 

uma festa de amor para a noite,  

 

e jura

um amor de pedra que dura 

e ternamente dói na formosura.

 

Sentindo cheiro de sono na hora da reza, 

o menino acaba dormindo até de manhã. 

 

Quando acorda, 

lá se foram as coisas que ficaram sonhadas 

entre o cheiro doce de grama depois da chuva 

e o cheiro de esmeraldas que seriam 

depois de tudo, meras turmalinas.


Lá se foi o cheiro de ouro 

das alianças quebradas,

e lá e se foiespecialmente, 

o cheiro das meninas a caminho do baile.


Lá se foi cheiro do alicate 

de trabalhos manuais 

do menino artesão,

perdido na feira.

 

Lá se foram todas as coisas rochosas 

        perdidas para sempre: 

 

o cheiro de pedra colorida 

usada no fardamento dos nobres 

o cheiro de pedras do calçamento pobre 

o cheiro das pedras de ruas da periferia 

o cheiro dos pés que ficaram na pele das pedras, 

o cheiro do café que sai toda manhã do casarão  

       desabitado há mais de um século,

o cheiro dos corredores de casarões 

acordados à noite pelo riso 

das ratazanas que zombam dos gatos, 


o cheiro de conversa fiada, 

o cheiro de boatos.


Lá se foram as figuras de santos 

e de calendários caprichosamente colecionados.

Lá se foram os versos mancos 

de certo caderno de quadras, 

quase trovas, versos enquadrados. 


(Lá se foram 

coisas velhas 

que eram novas), 


e noivas 

e novidades.

 

De repente, 

lá se foi o cheiro dos diques 

e dos cliques e dos alambiques.  


Perderam-se nas entranhas de novas idades,

o cheiro de fazenda

o cheiro de estrume,

o cheiro espavorido de um punhal, 

o cheiro esquisitado de sangue

de um moço morto ainda moço 

que estava, antes, 

morto de um ciúme.


Perderam-se nas entranhas de novas idades,

o cheiro de engenho,

o cheiro da cidade, 

o cheiro quente de rapadura,

o cheiro áspero de pedra da pedra-de-engenho 

que dói no milho impossível que o tortura.

 

O cheiro da pedra  

bate até que fura

o cheiro da pedra 

é que  dói na formosura.


E os meninos con /versam a valer.

 

Falam do cheiro de uma planta solteira 

usada pelo padre às escondidas do bispo,

para encantar a donzela de espinhela caída 

e de grandes olhos, 

azuis e redondos 

e grisalhos.


Falam do cheiro de olhar sorrateiro 

onde soprar um cisco, 

atrás da igreja, onde enganar o sineiro,

cheiro silencioso do vinho do padre 

cheiro do olhar do sacristão 

arisco 

correndo risco.


Falam do coração viúvo 

que de repente cismou de parar 

se atirou da varanda 

do edifício em frente

(doeu no jornal!)

 

cheiro desesperado de quem

perdendo-se de amor, 

ficou doente.


Cheiro da notícia de um dia 

tempos depois

quando os jornais televisivos

anunciaram a cura de todos os males, 

inclusive do amor faltoso

e dos pesadelos do moço morto,

pra o próprio bem

que morrendo uma vez, não morre mais.

 

Os meninos con/versam a valer.

 

Dizem do cheiro 

de um arremedo de samba 

cheiro de quem sempre 

viveu na corda bamba.

 

E dizem do cheiro inventado

pelos duendes achados no parque,

cheiro de carne juvenil,

cheiro de charque

cheiro de abril 

de algaravia

cheiro de algazarra sutil.


(A correria verde dos soldados 

tem cheiro de fuzil). 

 

Cheiro indigesto chorado 

pela garganta incolor da cotovia,

cheiro do canto de um pássaro 

que não via 

e não havia

que não teria cantado, nem nascido.

 

Cheiro deixado na partitura 

a ser decifrada 

pelo pároco, 

pelo bispo, 

pelo cura,

 

cheiro de remendo,

de um embaraço infeliz 

nas roupas de rei do carnaval em Paris.


Cheiro de espadas, 

de armadilhas atravessadas no mapa,

e de um tesouro para além das Tordesilhas.


Cheiro de uma noite 

dentro de outra noite não-inventada,

 cheiro de ouro caseiro

e cheiro de um ouro-preto imaginado.

 

Cheiro de açoite 

cheiro de cicatriz no lombo escravo  

cheiro infeliz de certo antepassado

e acreditam que teria sido "um bravo". 

 

Cheiro de tudo e de nada,

cheiro de amuleto

cheiro de banda que toca 

e amanhece o coreto,

enquanto a galinha choca

e amanhece o galinheiro,

cheiro de conversa fiada:

cheiro de tudo e de nada, 

cianureto cobrindo a madrugada.


Os meninos con /versam a valer.

 

E a pedra conversada

pensa e conspira

e respira pela metade

no bolo caseiro 

do menino pobre

que reinventando-se pelo cheiro,

de ponta a ponta, 

reinventa a mocidade.

 

As cores se misturam 

a novos cheiros inventados,       

e a pedra explode! 

 

Explodindo, pensa que pode

alimentar a cidade 

alimentar o mundo 

alimentar a eternidade.

 

E enquanto a pedra 

respira e pensa,

o menino transpira

o universo gira

na valsa caseira 

impenitente ou caipira.

 

O menino con / versa 

e escreve 

no seu pensamento,  

ou numa folha que passa

levada pelo  vento:


«Pássaro:

De dia, 

canto cinzento,

quando anoitece 

torre de cimento."

 

Depois, alheio,

 no seu devaneio

compra e embrulha:

 

Um púlpito de pedra

Um pórtico de pedra

Uma ópera de pedra 


Um santo de pedra 

Uma pálpebra de pedra

Uma pedra de pedra. 

 

Como retoque, 

talvez acabamento,

dá um cântico de pedra em pagamento.

 

O menino acordado

no seu pensamento

acredita que dorme.

 

E direi que sonha 

de um pesadelo enorme.

 

Sonha que a vida é breve

que a tarde é viúva

que a chuva é medonha

que a cigarra é saúva.


Com ternura é que esteve 

sonhando no sonho

ou melhor, no pesadelo,

e domando a pedra.

 

E sonhou que a pedra 

domaria a plebe

 

que domando a plebe

domaria o homem

 

que domando o homem

domaria o mundo...

 

E faria do mundo 

um outro mundo:

seu reinado.

 

Mas a verdade é dura,

a vida é curta 

e a viagem, sendo longa,

é enfadonha.

 

Se um menino pensa em abrandar a pedra 

o outro pensa em consumir a pedra 

 

Um menino pensa em conspurcar a pedra 

Acordar o sonho que dorme no interior da pedra.

 

O outro, pensa 

engravidar a pedra 

e povoar o mundo,

sob o poder da pedra 

e do alumbramento da pedra 

que levará seu nome.


Voar sob o poder da pedra que leva 

no bolso esquerdo do tempo, 

e que pesa como um relógio.

 

E o menino inventa um condado...

e até inaugura, de fato, 

algum reinado.

 

Desenha chuva 

e escreve “treva”.

 

Inventa um paraíso

e escreve “fado”.

 

Numa folha seca  

escreve "neve”.

 

Sua aldeia é toda inventada.


Tudo é inventado 

o mundo é inventado 

e é "novo em folha".


Vendo as pedras enlouquecidas

 escreve "povo". 


Talvez seja preciso vacinar as pedras...

 

"Era uma vez..."

O outro menino escuta histórias 

contadas do Sino das Mercês.

 

 Ouvindo o som da chuva,

        escreve "sino"    

ouvindo o som do sino,

         escreve  “trova”.

 

Na sua teologia (ou cosmologia)

a poesia se curva, 

a manhã cristalina é turva 

 

e tudo se renova.

 

Na sua sacristia de menino, 

por amor 

a noite devora as obras 

do dia anterior,

 

Tudo como 

se um santo de pedra

na verdade 

fosse um Deus devorador.


No seu compromisso 

de revisitar a quimera

a pedra reconfigurada é primavera,

e é tão redonda que lembra a lua cheia.

 

Particularmente, 

um menino recreia,

olhando de perto

diremos que pranteia 

é dado que certo,

jamais devaneia

quem escreve «deserto»

Num monte de areia.

 

Ninguém comenta 

mas é o que se presume:

pode até ser água-benta seu perfume.

 

O tempo talvez ignore 

o nome dos dois

principalmente nos versos 

a rima que se foi.

 

"Salvar a pedra?

 Fica pra depois."

 

Lá se foi a pedra particular de cada um

e a pedra comum de dois

pedra libertadora,

pedra de experimentação.

 

Foram-se os meninos,

mas o que será feito 

de todo esse mistério, amanhã?


O que será feito 

de toda essa matéria 

e, principalmente,

de suas artérias,

se os dois meninos

escutando o sono,

escutando o sino

e permeando o frio,

ficarão de férias?

 

POESIA NA ESTANTE

  • A CONTINGÊNCIA DO SER - Célio César Paduani
  • A INSÔNIA DOS GRILOS - Jorge Tufic
  • A RETÓRICA DO SILÊNCIO - Gilberto Mendonça Teles
  • A ROSA DO POVO - Carlos Drummond de Andrade
  • A SOLEIRA E O SÉCULO - Iacyr Anderson Freitas
  • A VACA E O HIPOGRIFO - Mário Quintana
  • AINDA O SOL - Gabriel Bicalho
  • ARTE DE ARMAR - Gilberto Mendonça Teles
  • ARTEFATOS DE AREIA - Francisco Carvalho
  • AS IMPUREZAS DO BRANCO - Carlos Drummond de Andrade
  • BARCA DOS SENTIDOS - Francisco Carvalho
  • BARULHOS - Ferreira Gullar
  • BAÚ DE ESPANTO - Mário Quintana
  • BICHO PAPEL - Régis Bonvicino
  • CADERNO H - Mário Quintana
  • CANTATA - Yeda Prates Bernis
  • CANTIGA DE ADORMECER TAMANDUÁ E ACORDAR UNS HOMENS - Pascoal Motta
  • CANTO E PALAVRA - Affonso Romano de Sant'Anna
  • CARAVELA - REDESCOBRIMENTOS - Gabriel Bicalho
  • CENTRAL POÉTICA - Lêdo Ivo
  • CONVERSA CLARA - Domingos Pelegrini Jr.
  • CORPO PORTÁTIL - Fernando Fiorese
  • CRIME NA FLORA - Ferreira Gullar
  • CRIME NA FLORA - Ferreira Gullar
  • CRISTAL DO TEMPO & A COR DO INVISíVEL - Maria do Rosário Teles do invisível
  • DIÁRIO DO MUDO - Paulinho Assunção
  • DICIONÁRIO MÍNIMO - Fernando Fábio Fiorese Furtado
  • DUAS ÁGUAS - João Cabral de Melo Neto
  • ELEGIA DO PAÍS DAS GERAIS - Dantas Motta
  • FINIS TERRA - Lêdo Ivo
  • GUARDANAPOS PINTADOS COM VINHO - Jorge Tufic
  • HORA ABERTA - Gilberto Mendonça Teles
  • INVENÇÃO DE ORFEU - Jorge de Lima
  • LAVRÁRIO - Márcio Almeida
  • LÍRIOS POSSÍVEIS - Gabriel Bicalho
  • LIRISMO RURAL (O Sereno do Cerrado) - Gilberto Mendonça Teles
  • MEL PERVERSO - Márcio Almeida
  • MELHORES POEMAS - Paulo Leminski
  • O ESTRANHO CANTO DO PÁSSARO - Célio César Paduani
  • O ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA - Cecília Meirelles
  • O SONO PROVISÓRIO - Antônio Barreto
  • O TERRA A TERRA DA LINGUAGEM - Gilberto Mendonça Teles
  • OS MELHORES POEMAS DE FERREIRA GULLAR - Ferreira Gullar
  • PASTO DE PEDRA - Bueno de Rivera
  • PLURAL DE NUVENS - Gilberto Mendonça Teles
  • POEMA SUJO - Ferreira Gullar
  • POEMAS REUNIDOS - Gilberto Mendonça Teles
  • POEMAS REUNIDOS - João Cabral de Melo Neto
  • POESIA REUNIDA - Jorge Tufic
  • RETRATO DE MÃE - Jorge Tufic
  • VER DE BOI - Pascoal Motta
  • VESÂNIA - Márcio Almeida
  • VIANDANTE - Yeda Prates Bernis