06/11/2015

CARTA ABERTA


CARTA ABERTA A ELIAS LAYON


 

(De GERALDO REIS, em Belo Horizonte 


para  ELIAS LAYON, em Mariana)



Layon, quando pintares o Juízo Final,

põe nele o meu rosto, entre as mãos de Deus se comprimindo.


Derrama alguma cor na tela,

exatamente sobre esse meu olho esquerdo assim

desfigurado



(éter?

útero?

eternidade?)


e uma tristeza talvez

de derramado fim de festa.


Põe, com requintes na tela,

mais essa invenção de última hora:

o órgão da Sé tocando um miserere

entre recôncavos e morros

e muito verde, LAYON,

muito verde ao fundo.


Põe depois alguma intimidade

na inconfidência mineira maltratada alhures

exclamação nas emoções cantadas de viés

futuridade na cor que refletir meu gesto

ponto de partida do nada que fui

ao que não foi meu verso e a minha fragilidade.


Nada mais acrescente à receita

que um cheiro úmido de terra,

com meninos cegos ao fundo

atestando o milagre da chuva diante de folhas secas.


Ainda assim, LAYON,

não comprarei esse quadro que não me define,

com motivações de fundo e forma que não me comportam.


(Nem sei se estou respirando na tela!)


A inocência de quem se envolveu na luta com a palavra

(e perdeu sempre) ficou nos becos da infância.


A camisa branca de minha adolescência

ficou nos becos da infância.


A clara dentição dos meus antepassados

ficou nos becos da infância.


A mão do menino que descrevia parábolas

e acenava para a mulher na janela inventada

ficou nos becos da infância.


O coração que imaginei generoso e de olhar impassível

ficou nos becos da infância.


O temor a Deus,

o arremedo de fé,

o remorso,

a sede

o arrepio das palavras tomadas de assalto

nos becos escuros de um verso ainda mal apanhado

a eternidade expulsa do paraíso

como se fora a própria serpente

que não considerava, por sedutora,

a inesperada gravidez da pedra,

as reticências, as meias-palavras,

as dobras ocultas do ocaso

que não pousaram sequer na partitura de um verso,

as velas abandonadas de um navio

padecendo um naufrágio no fundo dos rios,

não há na tela nada disso.


Não há na tela a sensação  talvez de um verso

mínimo que seja, registrando o primeiro beijo

o primeiro pecado

o primeiro remorso.


O gesto eloquente

que eu pensava ter no espelho,

e que ninguém notou

ficou enterrado em Mariana

entre minerais e misereres.


Não há nada de mim na tela,

nada reflete o verso que passou por mim 

e que se  foi sem registro.


Esse verso é que me condena.


Põe na tela a humilhação desse verso:

um traço de viés, em branco, na tela toda branca,

o arremedo de um mugido de gado

pinçado na visão dos cegos.


Põe na tela a memória do galho em que o tempo descansa

naquele  verso que eu deveria ter feito e que não fiz.


E nas mãos condenadoras de Deus,

se comprimindo,

põe a minha cabeça


e a eternidade do trigo

a circunferência do pão

e a quadratura do vinho.


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IDEIA SUBALTERNA "GERALDO REIS - LIVRO DO MÊS"



COM ALEGRIA,TRANSCREVO
 do blog 
IDEIA SUBALTERNA

 sábado, 4 de julho de 2015
Geraldo Reis
Livro do mês:
       Galardoado com o Prêmio Cidade de Belo Horizonte, em 1981, o livro de poemas de Geraldo Reis, Pastoral de Minas, mantém-se atual e instigante. Muito mais que uma coletânea de versos, o leitor vê-se diante de uma estrutura verbal orgânica e significativa. O título arrasta consigo uma dupla inscrição, ao indiciar uma fértil ambiguidade: de um lado aponta a vizinhança com os documentos episcopais, de natureza moral, enquanto de outro se mostrar como registro de digressões e notas a respeito de pastores. Enquanto aquela denota o zelo em apregoar a exortação moral, como tratado de condutas e modos de viver, esta alinha-se como rol de sabedoria de conhecimentos empíricos, relacionada a assuntos ligados à vida rústica e pastoril. Em ambas, o que sobeja diz respeito à manutenção de códigos, de intenções e alcance específicos, evidentes em resquícios, vestígios cartoriais e poéticos, com assertivas introdutórias pungentes: “Essa penumbra de proibição, destempero, alumbramento. Esse pelo, esse cavalo a galope tão primeiro, e derradeiro, e decadente, e parvo, o próprio peito. Esse pelo-sinal de pobreza, assessoria de miserê, parceria de ‘prevaricou’, ‘pecou’, ‘levou’.” (Reis, 1981, 23)
Não se nasce impunemente nas montanhas, Minas é muito mais que uma notação geográfica ou histórica – é silício, destino de farsa e desengano - “onde domar a trama / onde bulir o drama / onde cozer a farsa // onde cevar a faina / onde doer a fama / onde puir a praça” (Reis, 1981, 37). A segunda epígrafe, de Cecília Meireles, põe em relevo a crispada onda de sublevação, de fundas e sombrias memórias: “O país da Arcádia / súbito escurece / em nuvens de lágrimas. / Acabou-se a alegre / pastoral dourada: / pelas nuvens baixas, / a tormenta cresce”. A convenção árcade, desde então convocada, faz-se presente ao longo dos poemas, em traços que relevam a delicadeza da écloga, o viver nômade, a exaltação da sabedoria rústica. Tudo isso, sem desdenhar a bruta realidade, em que pontuam “aves de ag’ouro, encomendas / o couro negro das fadas // há penhas como quimeras / quimeras como pedradas” (Reis, 1981, 27). Em notações mais incisivas, pontuais: “caiam bênçãos de Deus / sobre o teu quepe // como uma faca viva / te decepe” (Reis, 1981, 40). A identificação do poeta ao pastor salienta um sentido de sabedoria intuitiva, segundo lição de Chevalier e Gheerbrant: “O pastor simboliza a vigília; sua função é um constante exercício de vigilância: este está desperto e vê. (...) Por causa das diferentes funções que exerce, o pastor aparece como um sábio, cuja ação deriva da contemplação e da visão interior”. (Chevalier; Gheerbrant, 1988, 691-692).

eu sei dos danos das minas
arando o ouro da intriga

também conheço o carinho
de devotadas marílias

se não me aprumo é por logro
das amadas concubinas

dou minhas barras de ouro
pelo coito das meninas
(...)
            (Reis, 1981, 64)

Ainda que voltada para formas populares, a escrita poética desta pastoral não se afasta da consciência da história. Nem dos torneios frasais típicos da fala da província, encaminhando o registro para a esfera da linguagem como legado: “meu coração não emenda coisa com coisa / pensamento ou fala / ou mesmo um fio / de memória amarga” (Reis, 1981, 70). O verso de Geraldo Reis guarda segredos e ecos imprevistos – “e era tudo um mau cheiro de mudo / arengando detrás da vidraça” (Reis, 1981, 33); “antes de tudo / o riacho / compondo rimas no vale// antes de tudo / o capacho / do que me corte ou retalhe” (Reis, 1981, 36). O livro termina cigano como começou, reavivando o nomadismo, no início, a viagem das tropas: “agora o touro / agora o ouro / agora o negro// as mulas de carga rara”; no final, referindo o cavalo “negro, baio e erradio”.  Bela e surpreendente fábula poética, de ressonâncias melódicas inusitadas, alguma incursão barroca, aguda percepção das modulações mínimas, sem medo de transitar pelos atalhos da história e da tradição, municiada das ferramentas da modernidade e da crítica.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988.
REIS, Geraldo. Pastoral de Minas. Belo Horizonte: Comunicação, 1981.

Postado por Edgard Pereira Reis às 08:30   

18/10/2015

EXCERTO DE 'ESTAÇÕES DA AUSÊNCIA'



Excerto de 

ESTAÇÕES DA AUSÊNCIA



 PASCHOAL MOTTA
 
Destaque para essa joia. Momento de altíssimo sentir e viver em poesia de permanente amor. O poema nos parece tenro, mas, “é de 1995”, informa o emocionado menestrel. Lá se foram 20 anos! O poema, rejuvenescido, novo em folha, vai atravessando o tempo, como se fosse um fruto saboroso, um perfume, um beijo trazido pela brisa da manhã para a afinar a sensibilidade, emocionar corações apaixonados e encantar o mundo. (Geraldo Reis)

- REGISTRO -
E hoje, 21/10/2023, acrescento: Um ano de seu passamento, Poeta! Continuamos no propósito de defender as bandeiras do verso, do espanto, das palavras perdidas, cordeiros que tentamos apascentar um dia juntos. O cajado em que escoramos a falta de sua presença física, aponta os rumos da caminhada. Esteja em Paz. Aqui, haveremos de esperar a Primavera que virá... e certamente virá. Ainda que não tenhamos seus (do poeta) "olhos físicos" para vê-la, ela permanece, e permanecendo, virá, pois nunca se foi. Está imortalizada nos versos que lhe foram consagrados.  (GR).   
 
 
viajas no pólen do desejo

nas asas de abelhas operosas,

luz inteira, garça em azul;



voltas do sempre, desde o gesto

inicial, desde a pedra e o musgo,

desde a fonte, desde a sede;



e chegas: tuas mãos destas vazias

velejam num remanso de lágrima,



por ausência e apelos repetidos;

luar na tarde, calma na estrada,

sonho de um sabiá protegido

na sombra de verde cantiga;



nem sabia mais o gosto da polpa

da manga de vez das meninices,

cheiro roxo do capim-de-mel;



agora, encanto: a festa nas espigas,

e te reencontro, encantada manhã,


flor de primavera, seiva e raiz.

HERANÇA


Geraldo Reis


Depois da noite, do abismo da noite

ninguém perturbe o silêncio dos óculos deixados,
como que esquecidos de mim,
sobre a mesa.

Nunca mais verei

com aqueles óculos,
minha dama,
De segredo feita e paisagem.

Nenhum calor

nas lentes
que a recorde.

No quarto onde mal dormia

eu vos deixo de herança
meus olhos cambaios.

28/03/2015

ALÍVIO


ALÍVIO

                                                  Márcio Almeida

Uma noite sem pernilongo,
uma semana sem falcatrua da Petrobras,
uma chuvinha com raios e trovões em meio a madrugada,
um jornal de TV sem bala perdida,
um dia  sem falta d´água,
um consenso no Congresso a favor do povo,
um dia sem o risco de apagão,
um outro dia sem aumento das taxas de serviços,
um programa de TV sem apelação ao sexo,
um político pronunciando a palavra "nós",
uma música que não seja só sertanoja ou funk,
um jornal sem a conivência com o poder,
uma religiosidade sem as peias do fanatismo,
uma manifestação pública sem os excessos do rancor,
um atendimento no SUS sem  omissão,
uma ida ao supermercado sem  inflação,
um livro bom que não seja best-seller,
uma taxa que não tenha desemprego,
uma redação do Enem que não tenha nota zero,
24 horas apenas sem o país entrar em déficit,
um outro sem o aumento de juros e tarifaço,
um expediente de Brasília sem o lastro da falácia,
um poente verde na Amazônia sem  prostituição ecológica,
um dia nas megalópoles sem o drama apocalíptico,
uma hora de preservação histórica ameaçada pela penúria,
um novo cânone que não se baseie em carnaval e futebol,
uma lei seca contra a operação Lava-Jato,
uma outra lei que não engesse as artes e a cultura,  
e ainda uma lei contra os embargos continentais,
um encolhimento no mercado de veículos aqui ou na Rússia, 
uma arrecadação que não seja pilhada por subterfúgios,
uma dívida que não comprometa as futuras gerações,
um resgate da perda quase irreparável da legitimidade política do país,
um refresco nos ataques terroristas no Oriente Médio,
uma bandeira branca contra as guerras pelo mundo,
uma reportagem definitiva sobre o massacre de judeus na 2a Guerra,
uma serventia gratuita  para smartphones e avanços da tecnologia,
um espelho para a transparência,
um antídoto contra os recordes inseguros (mortes, roubos, assaltos),
uma garantia para a liberdade de imprensa,
um idioma universal, um green card universal,
um aproveitamento de mais de 0,01% do cordão umbilical de banco privado de sangue,
um planejamento familiar planetário,
um ovni para esticar a vida fora da Terra,
uma forma para livrar o país de 32 bi nas contas públicas,
um único dia sem competitividade humana,
um único dia sem cometer devassa na natureza,
uma chance para tirar o país da UTI,
um instante para lembrar que a poesia (ainda) existe.

POESIA NA ESTANTE

  • A CONTINGÊNCIA DO SER - Célio César Paduani
  • A INSÔNIA DOS GRILOS - Jorge Tufic
  • A RETÓRICA DO SILÊNCIO - Gilberto Mendonça Teles
  • A ROSA DO POVO - Carlos Drummond de Andrade
  • A SOLEIRA E O SÉCULO - Iacyr Anderson Freitas
  • A VACA E O HIPOGRIFO - Mário Quintana
  • AINDA O SOL - Gabriel Bicalho
  • ARTE DE ARMAR - Gilberto Mendonça Teles
  • ARTEFATOS DE AREIA - Francisco Carvalho
  • AS IMPUREZAS DO BRANCO - Carlos Drummond de Andrade
  • BARCA DOS SENTIDOS - Francisco Carvalho
  • BARULHOS - Ferreira Gullar
  • BAÚ DE ESPANTO - Mário Quintana
  • BICHO PAPEL - Régis Bonvicino
  • CADERNO H - Mário Quintana
  • CANTATA - Yeda Prates Bernis
  • CANTIGA DE ADORMECER TAMANDUÁ E ACORDAR UNS HOMENS - Pascoal Motta
  • CANTO E PALAVRA - Affonso Romano de Sant'Anna
  • CARAVELA - REDESCOBRIMENTOS - Gabriel Bicalho
  • CENTRAL POÉTICA - Lêdo Ivo
  • CONVERSA CLARA - Domingos Pelegrini Jr.
  • CORPO PORTÁTIL - Fernando Fiorese
  • CRIME NA FLORA - Ferreira Gullar
  • CRIME NA FLORA - Ferreira Gullar
  • CRISTAL DO TEMPO & A COR DO INVISíVEL - Maria do Rosário Teles do invisível
  • DIÁRIO DO MUDO - Paulinho Assunção
  • DICIONÁRIO MÍNIMO - Fernando Fábio Fiorese Furtado
  • DUAS ÁGUAS - João Cabral de Melo Neto
  • ELEGIA DO PAÍS DAS GERAIS - Dantas Motta
  • FINIS TERRA - Lêdo Ivo
  • GUARDANAPOS PINTADOS COM VINHO - Jorge Tufic
  • HORA ABERTA - Gilberto Mendonça Teles
  • INVENÇÃO DE ORFEU - Jorge de Lima
  • LAVRÁRIO - Márcio Almeida
  • LÍRIOS POSSÍVEIS - Gabriel Bicalho
  • LIRISMO RURAL (O Sereno do Cerrado) - Gilberto Mendonça Teles
  • MEL PERVERSO - Márcio Almeida
  • MELHORES POEMAS - Paulo Leminski
  • O ESTRANHO CANTO DO PÁSSARO - Célio César Paduani
  • O ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA - Cecília Meirelles
  • O SONO PROVISÓRIO - Antônio Barreto
  • O TERRA A TERRA DA LINGUAGEM - Gilberto Mendonça Teles
  • OS MELHORES POEMAS DE FERREIRA GULLAR - Ferreira Gullar
  • PASTO DE PEDRA - Bueno de Rivera
  • PLURAL DE NUVENS - Gilberto Mendonça Teles
  • POEMA SUJO - Ferreira Gullar
  • POEMAS REUNIDOS - Gilberto Mendonça Teles
  • POEMAS REUNIDOS - João Cabral de Melo Neto
  • POESIA REUNIDA - Jorge Tufic
  • RETRATO DE MÃE - Jorge Tufic
  • VER DE BOI - Pascoal Motta
  • VESÂNIA - Márcio Almeida
  • VIANDANTE - Yeda Prates Bernis