11/09/2023

POEMA AO CANTO INDIFERENTE DAS CIGARRAS PINTADAS DE CENTEIO

 

POEMA AO CANTO INDIFERENTE

DAS CIGARRAS PINTADAS DE CENTEIO


Geraldo Reis

 

Ela ainda existe, reconheço,

embora tenha do amor 

apenas vertigem.

 

Existe nos olhos que domaram seu balanço de potra selvagem,

olhos que a viram dobrar a esquina de um tempo cruel,

olhos que apagaram as árvores soterradas na memória dos artífices, 

olhos que se quebraram com o tempo de vidro no interior dos relógios.

 

Ela ainda existe, reconheço,

embora tenha do amor apenas vertigem. 


Existe no punhal que surge da sombra, 

na figura esguia dos poetas que retornam 

vitoriosos do exílio onde teriam sido sacrificados,

existe no riso de escárnio dos milharais dançando ao sol,

existe no murmúrio verde das espigas.


Ela ainda existe, reconheço,

no mar absurdo do amor revolto 

que atravessa o espírito das sementes subtraídas 

largadas depois no ocaso, 

mas pensando árvores 

apesar do estrago das intrigas. 


Existe no pesadelo dos meninos acenando folhas, 

nos livros imaginários de páginas tão sofridas 

que ninguém escreveu.  


Existe, reconheço,

na luz das lentilhas cansadas, 

no tubo de ensaio vencido, 

no terreiro de rezas  improvisado, 

marcado de pés,

como se fosse trazido de longes Áfricas, 

entre óleos e tendas, 

poções e benzeduras.


Existe num livro de rezas

existe num livro de sombras,

existe num livro de torturas.


Existe na escuridão das caravelas 

com seus porões de suor despejados na praia,  

com seu cheiro grosso de urina e marcas 

                de sangue em desvario. 


Existe na porta dos fundos de antigos sobrados 

por onde se foram vidas e vozes 

vidas e vozes e nênias 

e versos tão castigados e tristes 

engolidos pela garganta impiedosa dos novos tempos.  


Existe na chuva derradeira trazida pelo vento 

e existe levantando ondas de poeira 

do que restou da lama desse amor 

guardado a sete chaves em mim.


Ela existe no rimar de tédio dos tamancos cantando 

e nos tamarindos olhando das janelas.


Existe na brisa ofegante soprada pelos cavalos 

e na cantiga das mulas subindo o morro 

colhendo prendas para a quermesse

e bordados para uma noite de regalos.


Existe contra o esquife dos soldados prensados na parede

pelos parvos edifícios de ondas tão amargas, 

que foram imponentes sobrados um dia.


Vamos todos 

sendo – e não sendo - 

por onde ergueram-se muralhas de vidro 

para o desespero de formigas e larvas e cupins.  


Ela ainda existe, reconheço

principalmente existe,

desesperadamente existe, 

                                                                              

No projeto novo de chuva 

que de repente aparece 

para adoecer os sarcófagos e atormentar os parasitas.


Existe nesse bem-querer ressuscitado e verde  

na volúpia  com que sonhamos desvendar o segredo dos condados 

para destruir os tronos, dando férias para sempre aos servos e vassalos.


Existe renascida para morrer de novo num indesejado fim de tarde.


E agora que remendamos o pano das velas desse barco-não

e fotografamos e retocamos enfim, ao redor

os gritos expectantes das pedras estarrecidas e incendiadas, 

ela existe.


Existe agora,

ainda agora,

quando a  última vela de nossa tarde incendiada 

vai sendo puxada pela procissão encantada de formigas indiferentes subindo o morro.


Nesse momento, amor,

nesse contexto, 

extenuados, 

nos encontraremos para desaparecer no espelho enluarado

de um novo tempo e de novos ritos.

 

Nesse momento, amor, 

você, molhada de folhas e arrebanhando mitos, 

me chamará pelo nome.

 

E iluminada de pássaros e de hissope,

haverá de inaugurar comigo nossa primeira manhã,

ao canto das cigarras indiferentes, pintadas de centeio.

 

(poema de agosto/2023)

 

POESIA NA ESTANTE

  • A CONTINGÊNCIA DO SER - Célio César Paduani
  • A INSÔNIA DOS GRILOS - Jorge Tufic
  • A RETÓRICA DO SILÊNCIO - Gilberto Mendonça Teles
  • A ROSA DO POVO - Carlos Drummond de Andrade
  • A SOLEIRA E O SÉCULO - Iacyr Anderson Freitas
  • A VACA E O HIPOGRIFO - Mário Quintana
  • AINDA O SOL - Gabriel Bicalho
  • ARTE DE ARMAR - Gilberto Mendonça Teles
  • ARTEFATOS DE AREIA - Francisco Carvalho
  • AS IMPUREZAS DO BRANCO - Carlos Drummond de Andrade
  • BARCA DOS SENTIDOS - Francisco Carvalho
  • BARULHOS - Ferreira Gullar
  • BAÚ DE ESPANTO - Mário Quintana
  • BICHO PAPEL - Régis Bonvicino
  • CADERNO H - Mário Quintana
  • CANTATA - Yeda Prates Bernis
  • CANTIGA DE ADORMECER TAMANDUÁ E ACORDAR UNS HOMENS - Pascoal Motta
  • CANTO E PALAVRA - Affonso Romano de Sant'Anna
  • CARAVELA - REDESCOBRIMENTOS - Gabriel Bicalho
  • CENTRAL POÉTICA - Lêdo Ivo
  • CONVERSA CLARA - Domingos Pelegrini Jr.
  • CORPO PORTÁTIL - Fernando Fiorese
  • CRIME NA FLORA - Ferreira Gullar
  • CRIME NA FLORA - Ferreira Gullar
  • CRISTAL DO TEMPO & A COR DO INVISíVEL - Maria do Rosário Teles do invisível
  • DIÁRIO DO MUDO - Paulinho Assunção
  • DICIONÁRIO MÍNIMO - Fernando Fábio Fiorese Furtado
  • DUAS ÁGUAS - João Cabral de Melo Neto
  • ELEGIA DO PAÍS DAS GERAIS - Dantas Motta
  • FINIS TERRA - Lêdo Ivo
  • GUARDANAPOS PINTADOS COM VINHO - Jorge Tufic
  • HORA ABERTA - Gilberto Mendonça Teles
  • INVENÇÃO DE ORFEU - Jorge de Lima
  • LAVRÁRIO - Márcio Almeida
  • LÍRIOS POSSÍVEIS - Gabriel Bicalho
  • LIRISMO RURAL (O Sereno do Cerrado) - Gilberto Mendonça Teles
  • MEL PERVERSO - Márcio Almeida
  • MELHORES POEMAS - Paulo Leminski
  • O ESTRANHO CANTO DO PÁSSARO - Célio César Paduani
  • O ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA - Cecília Meirelles
  • O SONO PROVISÓRIO - Antônio Barreto
  • O TERRA A TERRA DA LINGUAGEM - Gilberto Mendonça Teles
  • OS MELHORES POEMAS DE FERREIRA GULLAR - Ferreira Gullar
  • PASTO DE PEDRA - Bueno de Rivera
  • PLURAL DE NUVENS - Gilberto Mendonça Teles
  • POEMA SUJO - Ferreira Gullar
  • POEMAS REUNIDOS - Gilberto Mendonça Teles
  • POEMAS REUNIDOS - João Cabral de Melo Neto
  • POESIA REUNIDA - Jorge Tufic
  • RETRATO DE MÃE - Jorge Tufic
  • VER DE BOI - Pascoal Motta
  • VESÂNIA - Márcio Almeida
  • VIANDANTE - Yeda Prates Bernis