POEMA AO CANTO INDIFERENTE
DAS CIGARRAS PINTADAS DE CENTEIO
Geraldo
Reis
Ela ainda
existe, reconheço,
embora tenha do amor
apenas vertigem.
Existe nos olhos que domaram
seu balanço de potra selvagem,
olhos que a viram
dobrar a esquina de um tempo cruel,
olhos que apagaram
as árvores soterradas
na memória dos artífices,
olhos que se quebraram
com o tempo de vidro
no interior dos relógios.
Ela ainda existe, reconheço,
embora tenha do amor apenas vertigem.
Existe no punhal que surge da sombra,
na figura esguia dos poetas que retornam
vitoriosos do exílio onde teriam sido sacrificados,
existe no riso de escárnio dos milharais dançando ao sol,
existe no murmúrio verde das espigas.
Ela ainda existe, reconheço,
no mar absurdo do amor revolto
que atravessa o espírito das sementes subtraídas,
largadas depois no ocaso,
mas pensando árvores
apesar do estardalhaço das intrigas.
Existe no pesadelo dos meninos acenando folhas,
nos livros imaginários de páginas tão sofridas
que ninguém escreveu.
Existe, reconheço,
na luz das lentilhas cansadas,
no tubo de ensaio vencido,
no terreiro de rezas improvisado,
marcado de pés como se fosse
trazido de longes Áfricas,
entre óleos e tendas,
poções e benzeduras.
Existe num livro de rezas
existe num livro de sombras,
existe num livro de torturas
existe num livro de trevas.
Existe na escuridão das caravelas
com seus porões de suor despejados na praia,
com seu cheiro grosso de urina e marcas
de sangue em desvario.
Existe na porta dos fundos de antigos sobrados
por onde se foram vidas e vozes,
vidas e vozes e nênias,
e versos tão castigados e tristes
engolidos pela garganta impiedosa dos novos tempos.
Existe na chuva derradeira trazida pelo vento
e existe levantando ondas de poeira
do que restou da lama,
alma desse amor
guardado a sete chaves em mim.
Ela existe no rimar de tédio dos tamancos cantando
e nos tamarindos olhando das janelas.
Existe na brisa ofegante soprada pelos cavalos
e na cantiga das mulas subindo e descendo o
morro,
colhendo prendas para a quermesse
e bordados para uma noite de regalos.
Existe contra o esquife dos soldados
prensados na parede dessa lembrança antiga
entre parvos edifícios de ondas tão amargas,
que foram imponentes sobrados um dia,
mas foram sendo aos poucos desmontados
e foram até
completamente dissipados.
Vamos todos
- sendo e não sendo -
por onde ergueram-se muralhas de vidro
para o desespero de formigas e larvas e cupins.
Ela ainda existe, reconheço
principalmente existe,
desesperadamente existe...
no projeto novo de chuva
que de repente aparece
para adoecer os sarcófagos
e atormentar os parasitas.
Existe nesse bem-querer ressuscitado e verde
na volúpia com que sonhamos desvendar o segredo
dos gatos amando no telhado
para com isso detonar os condados
e destruir os tronos,
despedindo ou dando férias
para sempre,
aos servos e vassalos.
Ela existe
renascida para morrer de novo
num indesejado fim de tarde.
e agora
que fotografamos e retocamos enfim,
ao redor
os gritos expectantes das pedras
estarrecidas e incendiadas,
ela existe.
Existe agora,
ainda agora,
quando a última vela de nossa tarde entediada
vai sendo puxada pela procissão encantada
de formigas indiferentes subindo o morro.
Nesse momento, amor,
nesse contexto,
extenuados,
nos encontraremos para desaparecer
no espelho enluarado de um novo tempo
e de novos ritos.
Nesse momento, amor,
você, molhada de folhas
e arrebanhando mitos,
me chamará pelo nome.
E iluminada de
pássaros e de hissope,
haverá de inaugurar comigo
nossa primeira manhã,
ao canto das cigarras
indiferentes
pintadas de centeio.