MENSAGEM ÚMIDA
ROUBADA ÀS COTOVIAS
Geraldo Reis
Talvez não
fosse ainda
aquela, a derradeira noite,
talvez não
fosse aquela
a derradeira noite ainda.
Era preciso,
pois,
estar atento ao som das coivaras
trazidas de outros mundos girando,
de outras esferas,
Era preciso estar atento
à
dolorosa canção das águas,
ao atormentado
outono das tíbias
em que o
vento sopra impiedoso,
tornando a noite mais noite
e o negro da noite mais negro
e mais
dissonante ainda
a enferrujada
cor da paisagem.
Era preciso
estar atento ao cimento
que eternizara
a sudoeste os dinossauros.
Talvez não
fosse aquela
a derradeira
noite ainda.
Talvez não
fosse ainda
aquela
a derradeira
noite.
Ficaram
para trás
bares, barrancos, pontes, impérios,
palácios e mausoléus.
Ficaram para
trás
bailes de máscara,
bailes de gala
e a casa de óperas
que já esteve habitada
por morcegos.
Ficaram para
trás
antigos natais,
festas de viradas-do-ano,
crianças rapidamente envelhecidas
e brinquedos quebrados.
Ficaram para
trás
as rezas e Cantos de Minha Primeira Comunhão,
a Vela Quebrada que segurei na mão para a foto,
a Sacristia da Sé, onde teriam aparecido
pela primeira vez os versos
agarrados como almas à
sobrepeliz do abade,
e de um certo pároco,
anterior aos atuais hermeneutas do breviário.
Ficaram para
trás.
Mas, a aurora
insiste amordaçada,
repetindo em
mim
o nome que não saberei pronunciar,
nome que
pode ser o da mulher
que me encantou
quando me encontrou num livro que não li,
não vi,
não sonhei.
Me
encontrando num verso a decifrar,
ela tenta
inventar o meu rosto.
O sono cobre
por inteiro
seu corpo enrijecido,
e ela dorme.
Dorme, e ainda
ontem
cantava uma
canção me chamando.
Cantou no
amanhecer dos grotões,
cantou nas
vilas,
cantou nos
bosques.
Cantou nas
filas que amanhecem longas
à porta de hospitais improvisados,
porque eu poderia estar ali doente.
Cantou à beira dos lagos e dos rios
onde eu
poderia estar dormindo,
cantou para que eu surgisse glorioso,
viesse caminhando sobre as águas e
mostrasse meu rosto.
Cantou
diante dos muros
que
enlouquecem o interior das pedras
e rasgam a paisagem.
Cantou porque
talvez eu estivesse
dormindo sob
uma coivara de versos e
escutando
o canto
ressurgisse de
uma lápide incendiada.
Cantou para
que a matilha,
me
procurando, latisse mais alto,
e, farejando
longe, me encontrasse.
Cantou para
que o canto
energizando
os ponteiros de
modernos instrumentos de busca,
atravessando
os ares e a abóbada celeste,
fosse além
do cosmos e
durando mais
do que a eternidade,
me
encontrasse.
Cantou à porta
de um eremitério,
onde
supostamente estariam minhas vestes.
Cantando,
ela era mais
clara
do que o amanhecer mais claro das ravinas.
Numa curva
do tempo
é que nos perdemos um do outro
e cada um perdeu-se
de si mesmo, quando
um sono
maior do que o universo
passou por nós
entre buzinas que
descansaram no ocaso.
Depois de um
quase-amanhecer
é que nos perdemos
e esse
túnel é,
todo ele,
um desencontro.
No esôfago
desse túnel, viajamos
para a noite permanente, que a tudo
devora,
e para que o amor se diluísse na sombra.
Mas, talvez não
seja essa noite
a mesma em que nos perdemos
essa noite, talvez não seja aquela,
e talvez não seja a derradeira
nem permanente.
Era preciso
estar atento à cantoria dos terreiros
e ao canto dos
galos ressuscitando dias antigos
para que do
estrelado canto surgisse o meu rosto
e para que
de um risco de luz
da escuridão
brotasse a minha face macerada.
De dentro
dos búzios, ela ainda me acena.
De uma esquina
improvisada por duendes,
resistindo ao arrebatamento indesejado,
é que me chama.
Em algum
lugar do mundo,
me chama,
enquanto
buracos negros vão se abrindo
sob abismos
plantados
na velocidade de desesperados postes,
que, de sorrateiros,
como pontos
de fuga,
já ficaram
distantes.
Será preciso
estar atento pois
ao assovio
dos ventos varrendo os corredores
dos madrigais, e me chamando,
aos
vendavais que levam para longe
a mensagem
úmida roubada às cotovias.
Estando
atento ao canto dos terreiros
e às dobras ocultas de cobiçados búzios
será possível extrair do amálgama do
canto
a voz dessa mulher que me procura.
Será preciso estar atento
e cego
e
surdo
e mudo a tudo,
voltado
apenas para os sinais desse chamado
para
escutando
entender que esse morrer distante
em algum
lugar do mundo, a essa hora,
é o quadro
mais impiedoso que alguém pode pintar.
A cantoria
das aves de agouro já rasgou minhas teses,
meus versos,
minha roupa de domingo e minha carne:
Está
completamente nu meu peito rubro.
Minha
história de homem
que haveria de desvendar esse chamado
termina com o
barulho de um corpo que sucumbe
sob a derradeira
pá de cal lançada sobre um monturo
onde foi
deixada a urna em que ela dorme.
Uma
desesperada, indesejada,
furiosa e
derradeira pá de cal
cobre a manhã,
e o futuro
do pretérito
enfrentando o
Onipresente
insiste
s e r e n a m e n t e
em renascer
da
grama de veludo matizada de sol.
E é por isso,
mais por isso,
que talvez
não seja esta
ainda, a derradeira noite.
Talvez não
seja esta
a derradeira noite ainda.
Geraldo Reis
BH. 25 e 26 /04/2021