CARTA ABERTA A ELIAS LAYON
(De GERALDO REIS, em Belo Horizonte
para ELIAS LAYON, em Mariana)
Layon, quando pintares o Juízo Final,
põe nele o meu rosto, entre as mãos de Deus se comprimindo.
Derrama alguma cor na tela,
exatamente sobre esse meu olho esquerdo assim
desfigurado
(éter?
útero?
eternidade?)
e uma tristeza talvez
de derramado fim de festa.
Põe, com requintes na tela,
mais essa invenção de última hora:
o órgão da Sé tocando um miserere
entre recôncavos e morros
e muito verde, LAYON,
muito verde ao fundo.
Põe depois alguma intimidade
na inconfidência mineira maltratada alhures
exclamação nas emoções cantadas de viés
futuridade na cor que refletir meu gesto
ponto de partida do nada que fui
ao que não foi meu verso e a minha fragilidade.
Nada mais acrescente à receita
que um cheiro úmido de terra,
com meninos cegos ao fundo
atestando o milagre da chuva diante de folhas secas.
Ainda assim, LAYON,
não comprarei esse quadro que não me define,
com motivações de fundo e forma que não me comportam.
(Nem sei se estou respirando na tela!)
A inocência de quem se envolveu na luta com a palavra
(e perdeu sempre) ficou nos becos da infância.
A camisa branca de minha adolescência
ficou nos becos da infância.
A clara dentição dos meus antepassados
ficou nos becos da infância.
A mão do menino que descrevia parábolas
e acenava para a mulher na janela inventada
ficou nos becos da infância.
O coração que imaginei generoso e de olhar impassível
ficou nos becos da infância.
O temor a Deus,
o arremedo de fé,
o remorso,
a sede
o arrepio das palavras tomadas de assalto
nos becos escuros de um verso ainda mal apanhado
a eternidade expulsa do paraíso
como se fora a própria serpente
que não considerava, por sedutora,
a inesperada gravidez da pedra,
as reticências, as meias-palavras,
as dobras ocultas do ocaso
que não pousaram sequer na partitura de um verso,
as velas abandonadas de um navio
padecendo um naufrágio no fundo dos rios,
não há na tela nada disso.
Não há na tela a sensação talvez de um verso
mínimo que seja, registrando o primeiro beijo
o primeiro pecado
o primeiro remorso.
O gesto eloquente
que eu pensava ter no espelho,
e que ninguém notou
ficou enterrado em Mariana
entre minerais e misereres.
Não há nada de mim na tela,
nada reflete o verso que passou por mim
e que se foi sem registro.
Esse verso é que me condena.
Põe na tela a humilhação desse verso:
um traço de viés, em branco, na tela toda branca,
o arremedo de um mugido de gado
pinçado na visão dos cegos.
Põe na tela a memória do galho em que o tempo descansa
naquele verso que eu deveria ter feito e que não fiz.
E nas mãos condenadoras de Deus,
se comprimindo,
põe a minha cabeça
e a eternidade do trigo
a circunferência do pão
e a quadratura do vinho.
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