COM ALEGRIA,TRANSCREVO
do blog
IDEIA SUBALTERNA
Geraldo Reis
Livro do mês:
Galardoado com o Prêmio Cidade de Belo Horizonte, em 1981, o livro
de poemas de Geraldo Reis, Pastoral de Minas, mantém-se atual
e instigante. Muito mais que uma coletânea de versos, o leitor vê-se diante de
uma estrutura verbal orgânica e significativa. O título arrasta consigo uma
dupla inscrição, ao indiciar uma fértil ambiguidade: de um lado aponta a
vizinhança com os documentos episcopais, de natureza moral, enquanto de outro
se mostrar como registro de digressões e notas a respeito de pastores. Enquanto
aquela denota o zelo em apregoar a exortação moral, como tratado de condutas e
modos de viver, esta alinha-se como rol de sabedoria de conhecimentos
empíricos, relacionada a assuntos ligados à vida rústica e pastoril. Em ambas,
o que sobeja diz respeito à manutenção de códigos, de intenções e alcance
específicos, evidentes em resquícios, vestígios cartoriais e poéticos, com
assertivas introdutórias pungentes: “Essa penumbra de proibição, destempero,
alumbramento. Esse pelo, esse cavalo a galope tão primeiro, e derradeiro, e
decadente, e parvo, o próprio peito. Esse pelo-sinal de pobreza, assessoria de
miserê, parceria de ‘prevaricou’, ‘pecou’, ‘levou’.” (Reis, 1981, 23)
Não se nasce
impunemente nas montanhas, Minas é muito mais que uma notação geográfica ou
histórica – é silício, destino de farsa e desengano - “onde domar a trama /
onde bulir o drama / onde cozer a farsa // onde cevar a faina / onde doer a
fama / onde puir a praça” (Reis, 1981, 37). A segunda epígrafe, de Cecília
Meireles, põe em relevo a crispada onda de sublevação, de fundas e sombrias
memórias: “O país da Arcádia / súbito escurece / em nuvens de lágrimas. /
Acabou-se a alegre / pastoral dourada: / pelas nuvens baixas, / a tormenta
cresce”. A convenção árcade, desde então convocada, faz-se presente ao longo
dos poemas, em traços que relevam a delicadeza da écloga, o viver nômade, a
exaltação da sabedoria rústica. Tudo isso, sem desdenhar a bruta realidade, em
que pontuam “aves de ag’ouro, encomendas / o couro negro das fadas // há penhas
como quimeras / quimeras como pedradas” (Reis, 1981, 27). Em notações mais
incisivas, pontuais: “caiam bênçãos de Deus / sobre o teu quepe // como uma
faca viva / te decepe” (Reis, 1981, 40). A identificação do poeta ao pastor
salienta um sentido de sabedoria intuitiva, segundo lição de Chevalier e
Gheerbrant: “O pastor simboliza a vigília; sua função é um constante exercício
de vigilância: este está desperto e vê. (...) Por causa das diferentes funções
que exerce, o pastor aparece como um sábio, cuja ação deriva da contemplação e
da visão interior”. (Chevalier; Gheerbrant, 1988, 691-692).
eu sei dos danos
das minas
arando o ouro da
intriga
também conheço o
carinho
de devotadas
marílias
se não me aprumo é
por logro
das amadas
concubinas
dou minhas barras
de ouro
pelo coito das
meninas
(...)
(Reis, 1981, 64)
Ainda que voltada
para formas populares, a escrita poética desta pastoral não se afasta da
consciência da história. Nem dos torneios frasais típicos da fala da província,
encaminhando o registro para a esfera da linguagem como legado: “meu coração
não emenda coisa com coisa / pensamento ou fala / ou mesmo um fio / de memória
amarga” (Reis, 1981, 70). O verso de Geraldo Reis guarda segredos e ecos
imprevistos – “e era tudo um mau cheiro de mudo / arengando detrás da vidraça”
(Reis, 1981, 33); “antes de tudo / o riacho / compondo rimas no vale// antes de
tudo / o capacho / do que me corte ou retalhe” (Reis, 1981, 36). O livro
termina cigano como começou, reavivando o nomadismo, no início, a viagem das
tropas: “agora o touro / agora o ouro / agora o negro// as mulas de carga
rara”; no final, referindo o cavalo “negro, baio e erradio”. Bela e
surpreendente fábula poética, de ressonâncias melódicas inusitadas, alguma
incursão barroca, aguda percepção das modulações mínimas, sem medo de transitar
pelos atalhos da história e da tradição, municiada das ferramentas da
modernidade e da crítica.
CHEVALIER, Jean;
GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Costa
e Silva et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988.
REIS,
Geraldo. Pastoral de Minas. Belo Horizonte: Comunicação, 1981.
2 comentários:
Geraldo, obrigado pelo comentário simpático deixado no meu Sopa no Mel. Nunca esqueço aquele recital de poesias em Santa Teresa organizado pelo meu então vizinho Emerson que foi para o Canadá e nunca mais vi.
Pois é, meu amigo, sumiram todos.
Eu acompanho e leio com satisfação suas publicações. Você, como sempre,investigativo, sensível e inteligente. A nota é dez. Com louvor, como diziam os antigos mestres. Inté!
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