08/04/2023

DO POEMA COMO FÁBULA DISPERSA


DO POEMA

COMO FÁBULA DISPERSA 

 

          Geraldo Reis   


Por primeiro,

a José Marcelino de Souza Filho (SHINO), 

poeta e menino, 

                 vão esses versos a esmo, 

e talvez, depois, a mim mesmo.


Aos dois, 

fadados ao mesmo destino,

dedico esse 

poema como fábula dispersa.



Essa pedra respira,

(diz o menino)

no bolo caseiro,

 

o outro pergunta: 

onde? 

 

O primeiro responde:

No lombo traseiro 

do burro do conde.

 

Essa pedra respira 

(prosseguem)

e trabalha 

e transpira. 

 

(Viva a festa

Viva a experimentação!) 


É pedra que rola 

e parece ter cheiro de pedra mesmo

cheiro de campo e cidade.

 

É pedra que embolada,

tem cheiro de mato 

tem cheiro de tudo 

e tem cheiro de nada.

 

Cheiro espesso, 

molhado de areia,

cheiro brilhante e saboroso

cheiro branco e pegajoso 

de cavalos mancos

a galope na rua estreita de um sonho.


Cheiro da mistura 

que promete ser um quadro 

pintado com palavras no barranco.


Cheiro que escorre na parede escura, 

dos olhos de alguém que prepara 

uma festa de amor para a noite, 

e jura

um amor de pedra que dura 

e eternamente dói na formosura.

 

Sentindo cheiro de sono 

na hora da reza, 

o menino acaba dormindo até de manhã. 

 

Quando acorda, lá se foram 

as coisas que ficaram sonhadas 

entre o cheiro doce de grama depois da chuva 

e o cheiro de esmeraldas que seriam 

depois de tudo, meras turmalinas.


Lá se foi o cheiro de ouro 

das alianças quebradas,

e lá e se foiespecialmente, 

o cheiro das meninas a caminho do baile,

hora dançante, assim chamado.


Lá se foi cheiro do alicate 

de trabalhos manuais 

do menino artesão,

perdido na feira.

 

Lá se foram todas as coisas rochosas 

        perdidas para sempre: 

 

o cheiro de pedra colorida 

usada no fardamento dos nobres 

 

o cheiro de pedras do calçamento pobre da rua onde eu morava

o cheiro das pedras de ruas da periferia

(nem eram pedras, eram poeira _

onde moravam outros meninos ainda mais pobres.


o cheiro dos pés que ficaram na pele das pedras, 

o cheiro do café que sai toda manhã do casarão  

       desabitado há mais de um século,

o cheiro dos corredores de casarões 

acordados à noite pelo riso 

das ratazanas que zombam dos gatos, 


o cheiro de conversa fiada 

no bar que não vendida nada,

o cheiro de boatos.


Lá se foram as figuras de santos 

de calendários caprichosamente colecionados.


Lá se foram os versos mancos 

de certo caderno de quadras, 

quase trovas, versos enquadrados

que ninguém sabe onde anda. 


(Lá se foram 

coisas velhas 

completamente velhas

que para nós seram novas), 


e lá se foram noivas 

e novidades.

 

De repente, 

lá se foi o cheiro dos diques...

 

E dos cliques e dos alambiques

dos sinos e dos repiques.  


Perderam-se nas entranhas de novas idades,

o cheiro de fazenda,

o cheiro de estrume,

o cheiro espavorido de um punhal, 

o cheiro esquisitado de sangue

de um moço morto ainda moço 

que já se achava morto ou quase morto

             antes

                            de ciúme.


Perderam-se nas entranhas de novas idades,

o cheiro de engenho,

o cheiro de cidade, 

o cheiro quente de rapadura,

o cheiro áspero de pedra da pedra-de-engenho 

que dói no milho impossível que o tortura.

 

O cheiro da pedra  

bate até que fura

o cheiro da pedra 

é que  dói na formosura.


E os meninos versam e conversam a valer.

 

Falam do cheiro de uma planta solteira 

usada pelo padre às escondidas do bispo,

para encantar a donzela de espinhela caída 

e de grandes olhos azuis, 

redondos e grisalhos.


Falam do cheiro de olhar sorrateiro 

onde soprar um cisco, 

atrás da igreja, onde enganar o sineiro,

cheiro silencioso do vinho do padre 

cheiro do olhar do sacristão 

arisco, 

correndo risco.


Falam do coração viúvo 

que de repente cismou de parar 

se atirou da varanda 

do edifício em frente...

e doeu no jornal, 

 

cheiro desesperado de quem

perdendo-se de amor, 

ficou doente.


Cheiro da notícia de um dia 

tempos depois

quando os jornais televisivos

anunciaram a cura de todos os males, 

inclusive do amor faltoso

e dos pesadelos do moço morto,

para o próprio bem

que, morrendo uma vez, não morre mais.

 

Os meninos conversam 

e versam a valer

porque a poesia é um jogo

de cartas e pedras marcadas.

 

Dizem do cheiro 

de um arremedo de samba 

cheiro de quem sempre 

viveu na corda bamba.

 

E dizem do cheiro inventado

pelos duendes achados no parque,

cheiro de carne juvenil,

cheiro de charque

cheiro de abril 

de algaravia

cheiro de algazarra sutil.


(A correria verde dos soldados 

tem cheiro de fuzil). 

 

Cheiro indigesto chorado 

pela garganta incolor da cotovia,

cheiro do canto de um pássaro 

que não via 

e não havia

que não teria cantado, nem nascido.

 

Cheiro deixado na partitura 

a ser decifrada 

pelo pároco, 

pelo bispo, 

pelo cura,

 

cheiro de remendo,

de um embaraço infeliz 

nas roupas de "Rei do Carnaval em Paris".


Cheiro de espadas, 

de armadilhas atravessadas no mapa,

e de um tesouro para além das Tordesilhas.


Cheiro de uma noite 

dentro de outra noite não-inventada,

 cheiro de ouro caseiro

e cheiro de um ouro-preto imaginado.

 

Cheiro de açoite 

cheiro de cicatriz no lombo escravo  

cheiro infeliz de certo antepassado

e acreditam que teria sido "um bravo". 

 

Cheiro de tudo e de nada,

cheiro de amuleto

cheiro de banda que toca 

e amanhece o coreto,

enquanto a galinha choca

e amanhece o galinheiro,


cheiro de conversa fiada:

cheiro de tudo e de nada, 

cianureto cobrindo a madrugada.


Os meninos con /versam a valer.

 

E a pedra conversada

pensa e conspira

e respira pela metade

no bolo caseiro 

do menino pobre

que reinventando-se pelo cheiro,

de ponta a ponta, 

reinventa a mocidade.

 

As cores se misturam 

a novos cheiros inventados,       

e a pedra explode! 

 

Explodindo, pensa que pode

alimentar a cidade 

alimentar o mundo 

alimentar a eternidade.

 

E enquanto a pedra 

respira e pensa,

o menino transpira

o universo gira

na valsa caseira 

impenitente ou caipira.

 

O menino con / versa 

e escreve 

no seu pensamento,  

ou numa folha que passa

levada pelo  vento:


«Pássaro:

De dia, 

canto cinzento,

quando anoitece 

torre de cimento."

 

Depois, alheio,

 no seu devaneio

compra e embrulha:

 

Um púlpito de pedra

Um pórtico de pedra

Uma ópera de pedra 


Um santo de pedra 

Uma pálpebra de pedra

Uma pedra de pedra. 

 

Como retoque, 

talvez acabamento,

dá um cântico de pedra em pagamento.

 

O menino acordado

no seu pensamento

acredita que dorme.

 

E direi que sonha 

de um pesadelo enorme.

 

Sonha que a vida é breve

que a tarde é viúva

que a chuva é medonha

que a cigarra é saúva.


Com ternura é que esteve 

sonhando no sonho

ou melhor, no pesadelo,

e domando a pedra.

 

E sonhou que a pedra 

domaria a plebe

 

que domando a plebe

domaria o homem

 

que domando o homem

domaria o mundo...

 

E faria do mundo 

um outro mundo:

seu reinado.

 

Mas a verdade é dura,

a vida é curta 

e a viagem, sendo longa,

é enfadonha.

 

Se um menino pensa em abrandar a pedra 

o outro pensa em consumir a pedra 

 

Um menino pensa em conspurcar a pedra 

Acordar o sonho que dorme no interior da pedra.

 

O outro, pensa 

engravidar a pedra 

e povoar o mundo,

sob o poder da pedra 

e do alumbramento da pedra 

que levará seu nome.


Voar sob o poder da pedra que leva 

no bolso esquerdo do tempo, 

e que pesa como um relógio.

 

E o menino inventa um condado...

e até inaugura, de fato, 

algum reinado.

 

Desenha chuva 

e escreve “treva”.

 

Inventa um paraíso

e escreve “fado”.

 

Numa folha seca  

escreve "neve”.

 

Sua aldeia é toda inventada.


Tudo é inventado 

o mundo é inventado 

e é "novo em folha".


Vendo as pedras enlouquecidas

 escreve "povo". 


Talvez seja preciso vacinar as pedras...

 

"Era uma vez..."

O outro menino escuta histórias 

contadas do Sino das Mercês.

 

 Ouvindo o som da chuva,

        escreve "sino"    

ouvindo o som do sino,

         escreve  “trova”.

 

Na sua teologia (ou cosmologia)

a poesia se curva, 

a manhã cristalina 

em verdade, é turva. 

 

E tudo se renova.

 

Na sua sacristia de menino, 

por amor 

a noite devora as obras 

do dia anterior,

 

Tudo como 

se um santo de pedra

na verdade 

fosse um Deus devorador.


No seu compromisso 

de revisitar a quimera

a pedra reconfigurada é primavera,

e é tão redonda que lembra a lua cheia.

 

Particularmente, 

um menino recreia,

olhando de perto

diremos que pranteia 

é dado que certo,

jamais devaneia

quem escreve «deserto»

Num monte de areia.

 

Ninguém comenta 

mas é o que se presume:

pode até ser água-benta seu perfume.

 

O tempo talvez ignore 

o nome dos dois

principalmente nos versos 

a rima que se foi.

 

"Salvar a pedra?

 Fica pra depois."

 

Lá se foi a pedra particular de cada um

e a pedra comum de dois

pedra libertadora,

pedra de experimentação.

 

Foram-se os meninos,

mas o que será feito 

de todo esse mistério, amanhã?


O que será feito 

de toda essa matéria 

e, principalmente,

de suas artérias,

se os dois meninos

escutando o sono,

escutando o sino

e permeando o frio,

ficarão de férias?

 

A poesia, não.


No compromisso seu

de revisitar a quimera

no interior da pedra reconfigurada, 

a primavera é redonda, 

tão redonda que lembra a lua cheia.

29/03/2023


Capa de uma ANTOLOGIA POÉTICA, a segunda, de uma série que começou no número 1 e terminou em seguida. Observo que a capa não informa o ano da publicação. A editora é a INTERLIVROS, de Belo Horizonte/MG. O ano, 1976 (mas, vou conferir). A ANTOLOGIA UM trouxe poemas de ADÃO VENTURA, HENRY CORRÊA DE ARAÚJO, LIBÉRIO NEVES, MÁRCIO SAMPAIO -  e teria sido publicada no ano anterior (a conferir). Cada autor contribuiu com uma média de 50 páginas. A antologia de n° 2 teve significativa repercussão e foi indicada como obra de leitura obrigatória para o Vestibular da UFMG/1976 (a conferir).  



27/02/2023


PESSOAS INESQUECÍVEIS 


"Há pessoas inesquecíveis. 

São pessoas raras. 

Moram em nosso coração

e fazem parte de nossa paisagem interior.

Deus esteja presente, abençoando todas elas". 

 

Assim registrei alhures. O tiro é metafórico. Foi disparado para acertar o coração de certas pessoas que, de alguma forma, se identificam com o autor. (GR) 

BH 27/FEVEREIRO/2023.

01/12/2022

 

NAQUELE JANEIRO

             

                Geraldo Reis

 

Naquele janeiro as centopeias seriam silenciadas pela chuva 

E carreadas até o primitivo desenho de teu corpo na pedra.

Naquele janeiro, as águas repetiriam teu nome no tropel dos cavalos

E o relâmpago recortaria nas grotas o caminho de teu seio.


Naquele janeiro habitarias para sempre o coração das águas

Entre musgo, lianas, serpentes e beijos.

Naquele janeiro dariam teu corpo como desterrado para sempre

E o barulho de teu sono anunciaria a instalação do caos na paisagem.


Naquele janeiro as vinhas seriam pisoteadas pelo gado

E as uvas encurtariam a embriaguez antiga

Do vinho derramado pela mão que repetiu teu gesto.

 
Naquele janeiro, deusa, tendo-se por dissipado na bruma o estampido

Seríamos surpreendidos pelo teu nome na velha folha de malva 

E boiaríamos para sempre, órfãos de tua boca, de tua face, mãos e atropelos.


07/11/2022



                             

BUENO DE RIVERA

                         

                     Geraldo Reis


 

Levaram Bueno...

Eu vi quando levaram Bueno.

  

Uns homens tristes 

levaram Bueno.

                 

Fazia Frio. 


 

(Registro sem data, entre os "incompletos ou inacabados"..

Coisa escrita nos anos 80, talvez 90. no final dos anos 80 ou 90.

Teria outras versões (ou aversões), apenas tentadas,

mas o original, permanecendo intacto, era esse. 

Talvez não precisasse dizer mais nada.

Estava pedindo publicação).

21/10/2022

ELEGIA AO POETA PASCOAL MOTA de cujo falecimento, hoje, 21/10/2022, acabo de ter notícia

 Geraldo Reis - A Toca da Serpente - A Garganta da Serpente 

O link acima remete à publicação do poema no blog A TOCA DA SERPENTE,  postado ali há uns 14 anos, embora escrito bem antes. 
Republico com alterações apenas quanto à disposição de alguns versos.
Tenho nesse blog, uma outra versão, mas encontrando essa, trabalhei, posso dizer, modificando apenas a disposição de alguns versos.
Ele gostava dessa homenagem que, dentre outras, puder fazer-lhe em vida. 
O poema, que tivemos oportunidade de ler várias vezes, vai agora como homenagem póstuma. 
Registro que rimos muitas vezes das metáforas trabalhadas com o verde, e rimos até das referências bucólicas. 
A "motivação do poema" no geral, tinha uma fonte que facilitava, aqui e ali,  a tradução. 
E a tradução vinha, para nós, com um  um significado "muito especial". 
O fecho então, "teu nome que é fogo / que é verde e que atravessa / incólume / a escura montanha do vero esquecimento", veio, segundo me disse, como "aquela necessária chave de ouro". 
Republicando, reverencio um de nossos maiores poetas, de cujo passamento tenho notícia, por e-mail, através de nosso amigo comum, Elias Layon.
Em um de nossos últimos contatos, Pascoal me disse que estava trabalhando intensamente,  terminando uma obra que revisava e que teria mais de 400 páginas, dentre outros trabalhos.
Perdi um mestre, um confidente, um amigo, um irmão. 
Saudade, Mestre! Espere por nós, que estamos a caminho... 

De seu extraordinário VER DE BOI - Prêmio Cidade de Belo Horizonte de Poesia 1973, publicado em 1974, cujo texto das "orelhas" esteve a cargo de Geraldo Reis, destacamos,  mais especificamente, do ABOIO VIII: 

"Vamos, meu boi tão sozinho
olhar de frente esse azul 
de céu que é nosso comum 
até não chegar meu dia". 

E do mesmo poema, ainda: 

"Ai vida, paz de mentira
ai medo da escuridão." 

Missão cumprida, mestre! 
Descanse em paz! 
 
Nota redigida e postada em 22/10/2024 - Lembrando, mais uma vez, o mestre PM, que faleceu há dois anos, Mas "atravessa, incólume, a escura montanha do vero esquecimento", como no poema ACALANTO DE PAPEL PARA O AMIGO VERDE.   

O título VER DE BOI, é Carlos Antoninho Duarte. Foi dado ao poema Aboio VIII, o primeiro do que veio a ser uma série. 
CAD sabia muito e explicou que a expressão VER DE, além do trocadilho, é claro, era semelhante a IR DE (por exemplo,  ir de de trem).  Para ele, o poema era uma viagem, com o autor se colocando no lugar do boi. Uma metáfora, enfim. 
Ninguém sabe por onde anda CARLOS ANTONINHO DUARTE, que escreveu e publicou uma matéria no jornal O ESTADO DE MINAS, nos anos 70/80, com destaque para os POETAS DA PALAVRA, aqueles que não estavam ligados ao concretismo, por exemplo. 
Nunca nos encontramos e nunca nos falamos. Não houve uma "oportunidade".  O misterioso escritor, segundo soube e até onde pude saber, residia em Venda Nova - BH.    


ACALANTO DE PAPEL PARA UM AMIGO VERDE 

 
Para Pascoal Motta 


I


com as digitais do vento 
gravarei teu nome 
nas asas das aves 

com as digitais do voo 
gravarei teu nome 
nas púrpuras do azul 

com as digitais do gado 
gravarei teu nome 
na amplidão do berro 

com as digitais do futuro 
gravarei teu nome 
no brilho da promessa 

com as digitais da manhã 
gravarei teu nome 
na epiderme do dia 

com as digitais do canto 
gravarei teu nome 
na ossatura da pauta 

com as digitais do encontro 
gravarei teu nome 
na pele da ausência 

com as digitais dos lanhos 
gravarei teu nome 
na permanência do sangue 

com as digitais da escuta 
gravarei teu nome 
no ouvido da noite 

com as digitais de exílio 
gravarei teu nome 
na embarcação dos afogados

com as digitais da idade 
gravarei teu nome 
no coração do tempo 

com as digitais da permanência 
gravarei teu nome 
no aperto de mãos para sempre adiado. (*)

 
II 


onde se acautelam de novas borrascas 
o hálito impuro de Deus e o barro novo ainda imóvel 
escreverei teu nome 

onde a graminácea é como um por-de-sol bovino 
na celebração pacífica das heras envolvendo 
a estrela que há de domar o pântano
mais escreverei teu nome 

onde o décimo algarismo abafará toda metáfora 
e toda viagem 
e toda efígie 
e todo verde 
escreverei teu nome 

onde os últimos bardos 
serão precipitados com seus versos 
e com seus barcos 
e com seus remos e salmos como sementes vencidas 
escreverei teu nome 

onde os poemas tão somente imaginados 
estarão dormindo para sempre como no fundo 
de uns olhos verdes já mortiços, 
apagados, talvez, quem sabe, 
mais e mais escreverei teu nome.


III 


teu nome 
que é ouro 
vencendo a indiferença dos búzios e da distância 

teu nome 
que é porto 
domando a ira das águas e dos abismos 

teu nome 
que é susto 
vencendo a indiferença dos galos e dos embrulhos 

teu nome 
que é verde 
dominando toda a extensão dos pântanos e da clorofila 

teu nome 
que é memória 
e que reverdece a metáfora na gestação da ausência.


IV 


aqui se acautelam de novas borrascas 
o hálito impuro de deus e o barro novo ainda imóvel 

aqui, o abismo será vero esquecimento 
depois que o teu corpo imolado 
se repetir na pupila dos afagos 

aqui, vencendo a rocha, 
a dura eternidade e as acácias 
escreverei teu nome 

aqui, na esquina dos antigos versos do que foi Minas, 
e do que foi um dia a tua infância em territórios remotos,
barrocos e pastoris 
escreverei teu nome.

aqui, durando como os martelos de teu pai apascentando pesados fardos de sola para sapatos e arreios donde pisar a eternidade e cavalgar o sono 
escreverei teu nome. 

aqui, onde o barro novo se debate ao sopro impuro de Deus 
e se contorce de um novo nascimento 
ao lado de tua mãe soprando o fogo da poesia no cerne da candeia 
escreverei teu nome. 

teu nome que é paz 
qual bandeira hasteada na memória do vento 
memória que é luz afável e permanente 
 
escreverei teu nome 
 
que é fogo 
que é verde 
e que atravessa    
 
incólume
 
 a escura montanha do vero esquecimento

                                         
(Geraldo Reis - BH)

(*) - "aperto de mãos para sempre adiado" - de Pascoal Mota,  expressão que encerra, como remate, o poema ELEGIA A DANTAS MOTA, publicado em o ESTADO DE MINAS, quando faleceu o poeta de Aiuruoca e das Elegias do País das Gerais.

28/09/2022

GERALDO REIS POETA E COLEGAS DA CAIXA ECONÔMICA FEDERAL - AGÊNCIA PADRE EUSTÁQUIO - BELO HORIZONTE /MG -

 

Pessoas inesquecíveis...

Alguém se reconhece na foto?

E a musa do poema ROMANCE DA MOÇA DO CAIXA
Alguém sabe quem é, ao lado de quem ela se encontra? 
Ou, exatamente, atrás de quem? 

"De uns certos chefes a moça  
a poder de Deus tem escapado 
 um lhe disse como trunfo,  
sou vasectomizado". 

Alguém se reconhece nesses versos?
Esse tempo está quase na eternidade, onde mora a emoção. (GR) 

23/09/2020

A GRAVIDEZ DA PEDRA

 

A GRAVIDEZ 

DA PEDRA

 

                   Geraldo Reis


Os homens não consideraram a gravidez da pedra

E não consideraram o quanto a pedra era triste.

Não consideraram se nela havia ouro,

se a pedra era um sonho

se a pedra era rua

se a pedra era canto

se embalava os pássaros 

se dominava a distância.


Os homens não se deram conta 

de que a pedra era feita 

de um certo elemento

que era o próprio homem. 


De um certo minério que havia no sangue 

e fazia a memória 

do que no homem era pedra,

do que na pedra era homem.


O homem passou pela pedra  sem notar 

a gestação do menino que havia na pedra  

quanto era pedra na pedra  

o quanto era sonho.


O que era cobiça  

que era pesadelo 

o que era vício 

que era abdome.


Os homens não consideraram

os tímpanos da pedra 

o útero da pedra      

os medos da pedra 

os imponderáveis mistérios da pedra

o segredo imemorial que levava no ventre.  


E não consideraram os caminhos apontados

pelos rumos impolutos da pedra 

O degredo que representava a pedra 

A redenção que viria da pedra 

A postura interior da pedra

A transfiguração que viria 

do lado sobremaneira esquerdo da pedra 

O alumbramento talvez de possuí-la. 


E não consideraram o que na pedra era pedra

O que na pedra era homem

O que na pedra era argila.


Os homens não consideraram os artifícios da pedra

Os conflitos íntimos da pedra 

O silêncio interior da pedra 

O compromisso de monumento da pedra 

sacrifício peridural da pedra. 


Não consideraram os limites humanos da pedra 

A complexa dimensão da pedra 

As severas dificuldades da pedra 

na sua existência frágil.

 

A vida inteira passamos pela pedra 

Sem considerar o que na pedra é pedra 

O que na pedra é útero 

O que na pedra é homem.


A  vida inteira o homem caminha de mãos dadas com a pedra. 


Com a paciência da pedra, 

o homem dorme 

com o cansaço da pedra,  

anoitece.


Com a sabedoria da pedra é que se multiplica, 

com o segredo da pedra é que se renova.


A vida inteira o homem 

ignora a pedra que o acompanha


A pedra que é a sua sombra 

e que nele dorme 


A pedra que é a sua memória 

que recebe o seu nome. 


18/09/2020

CONSIDERAÇÕES A PROPÓSITO DO VERSO ENQUANTO PÃO DOMESTICADO

             

CONSIDERAÇÕES A PROPÓSITO 

DO VERSO ENQUANTO PÃO DOMESTICADO

 

            Geraldo Reis


I


Eu não devia ter sangrado os porcos

antes de arrancar o couro dos lagartos,

 

antes de embolsar 30 moedas por ter dissimulado o verbo

e espalhado estranho rito em territórios minados,

 

antes de orar sobre os corpos mutilados dos menestréis 

vendidos como escravos para longínquas paragens,

 

antes de traduzir a gargalhada de um mioma

que fingindo ser palavra andou comendo o verso,

 

antes de chorar sobre  a diáspora 

de uma figura de estilo perdida entre sucatas,

atrás de uns óculos antigos 

envelhecida e escorraçada de entre novos inventores,

 

antes de repreender os ares ríspidos da véspera

que sendo deusa carregava no ventre o dia novo,

 

antes de embaralhar os ventos 

soprados no outono de um perdido campanário, 

 

antes de ouvir o sino plantado no alto de uma montanha 

que já não vale nada porque foi tomada de assalto.


II

 

Eu não devia ter sangrado os porcos

antes de embrulhar a paciência 

das enguias encobertas de lama,

 

antes de atravessar definitivamente 

a porta fechada pelos poetas mortos

atraídos pelo brilho milenar dos olhos da serpente,

 

antes de acionar à toda os motores da lancha costeira 

e disparar o  laser impiedoso, inclemente,

sobre os sorrateiros invasores,

 

antes de varrer com trezentos faróis incendiados

o negrume da noite acorrentado à tempestade,

 

antes de acender a pira improvisada de azeite 

plantada na intimidade do poço 

para arder ali, ao sul das homilias,

pelo menos durante a próxima eternidade,

quase para sempre,

porque levara um verso ao suicídio.

 

III

 

Eu não devia ter sangrado os porcos

antes de introduzir um salmo 

na memória da semente enlouquecida,

 

antes de extrair um resultado improvável

e de todo inesperado

da equação impossível 

que seria a salvação do verbo silenciado,

 

antes de modular a espinha dorsal 

dos ventos soprados pela garganta dos galos 

para que do canto brotasse um algarismo,

 

antes de repreender severamente 

o incenso que insulta a paciência de Deus 

e leva ao desespero a veste pobre dos abades.

 

IV

 

Eu não devia ter sangrado os porcos

antes de destruir a entrada 

dos templos e dos parques incendiados, 

 

antes de apagar a marca de um ‘beijo de judas’ 

que passava despercebido, 

disfarçado sob a pele de búzios enganadores 

e adorados pelos artófagos, 

 

antes de interpretar o canto das carpideiras sob a chuva,                  

canto que vem de longe e não comove mais a imensidão do bosque,

 

antes de desvendar o trigo 

que descansa no colo de uma semente, 

ao agasalho de enternecido sentimento materno,

 

antes de entender que a dimensão humana tem a ver, 

e muito, 

     com a resignação de um papel que pensávamos indignado, 

    papel que ignora, por dever de ofício, 

                    todo assédio,  

papel que embrulha, por indiferente, 

o substancial teor de sódio do pão caseiro que o devora.

 

V

 

Eu não devia ter sangrado os porcos

antes de decifrar o artifício de voo das aves,

 

antes de dissolver o grito 

intumescido no raciocínio das enguias 

 

antes de encerrar a procura 

de corpos talvez adormecidos sob os campos ceifados,

 

antes de apascentar os frutos

tornados de uma ressurreição à esquerda dos abismos,

 

antes de ordenhar as porcas que segundo os profetas

cantariam com gargantas de alumínio um canto tênue, 

clamando pela manhã de um verso suspenso na clave de sol,

 

antes de saber se os dromedários 

foram eleitos também para a festa,  

ou tão somente para o sacrifício,

 

antes de abater os corifeus em comício

no conflito de um verbo feito pão,

entregue a todos como presente de uma antiguidade rupestre 

distanciada de toda humana caligrafia.                                                              

VI

 

Eu não devia ter sangrado os porcos

antes de esquadrinhar a ceia empiricamente,

 

antes de traduzir, por encomenda,

os versos que não chegaram ao seu destino como livros,

versos que embora prontos 

não puderam ser escritos, 

e desapareceram, perdidos de seus improváveis autores,  

e escaparam, assim,  

da mesa faminta de iludidos destinatários, 

 

antes de doar à terra um exército de palavras 

envelhecidas e derrotadas, 

em verdade recém-saídas 

dos compêndios da história antiga de mim mesmo,

reproduzindo a história pessoal de todo ser humano,

desde o primeiro habitante das águas e do subsolo.

 

VII

                                                        

Eu não devia ter sangrados os porcos 

antes de chover definitivamente sobre os plátanos,

antes traduzir o zumbido dos insetos 

que chegam atrasados para a festa 

e exortam a paisagem 

sangrando como desconhecido mercúrio,

enfeitados de fórmulas 

e de flechas tão somente molhadas de arco-íris, 

mas que se acreditavam guardadas 

no interior azul de um sacrário

de onde seriam disparadas 

como verdadeiro pão humanizado.

 

VIII

 

Eu não devia ter sangrado os porcos

antes de entender que a dimensão interior do homem 

tem a ver, e muito,  

com a dimensão estética desse pão caseiro,

 

antes de traduzir a dor estética de simples papel

que recebe o verso unificado e o multiplica 

 

e o abençoa o absolve,

 

e embrulha e entrega a todos,

repartindo,

por dever de ofício,

 

ainda aceso, 

feito brasa,

como se fosse verdadeiro pão,

embora rústico,

 

o pão da misericórdia,

 

o próprio corpo de Deus 

    em mim domesticado.                                      


Geraldo Reis

Belo Horizonte, 18 e 19 de fevereiro de 2020.                                                                                                

 

POESIA NA ESTANTE

  • 50 POEMAS (Antologia bilíngue: Português e Alemão) - Anderson Braga Horta / Tradução de Curt Meyr-Clason)
  • A CONTINGÊNCIA DO SER - Célio César Paduani
  • A INSÔNIA DOS GRILOS - Jorge Tufic
  • A RETÓRICA DO SILÊNCIO - Gilberto Mendonça Teles
  • A ROSA DO POVO - Carlos Drummond de Andrade
  • A SOLEIRA E O SÉCULO - Iacyr Anderson Freitas
  • A VACA E O HIPOGRIFO - Mário Quintana
  • AINDA O SOL - Gabriel Bicalho
  • ARTE DE ARMAR - Gilberto Mendonça Teles
  • ARTEFATOS DE AREIA - Francisco Carvalho
  • AS IMPUREZAS DO BRANCO - Carlos Drummond de Andrade
  • BARCA DOS SENTIDOS - Francisco Carvalho
  • BARULHOS - Ferreira Gullar
  • BAÚ DE ESPANTO - Mário Quintana
  • BICHO PAPEL - Régis Bonvicino
  • CADERNO H - Mário Quintana
  • CANTATA - Yeda Prates Bernis
  • CANTIGA DE ADORMECER TAMANDUÁ E ACORDAR UNS HOMENS - Pascoal Motta
  • CANTO E PALAVRA - Affonso Romano de Sant'Anna
  • CARAVELA - REDESCOBRIMENTOS - Gabriel Bicalho
  • CENTRAL POÉTICA - Lêdo Ivo
  • CONVERSA CLARA - Domingos Pelegrini Jr.
  • CORPO PORTÁTIL - Fernando Fiorese
  • CRIME NA FLORA - Ferreira Gullar
  • CRISTAL DO TEMPO & A COR DO INVISíVEL - Maria do Rosário Teles do invisível
  • DIÁRIO DO MUDO - Paulinho Assunção
  • DICIONÁRIO MÍNIMO - Fernando Fábio Fiorese Furtado
  • DUAS ÁGUAS - João Cabral de Melo Neto
  • ELEGIA DO PAÍS DAS GERAIS - Dantas Motta
  • ESTESIA (Triolés) - Napoleão Valadares
  • FANTASIA - Napoleão Valadares
  • FINIS TERRA - Lêdo Ivo
  • GUARDANAPOS PINTADOS COM VINHO - Jorge Tufic
  • HORA ABERTA - Gilberto Mendonça Teles
  • HORTA (Versos em Três Tempos) - Anderso de Araújo Horta - Maria Braga Horta e Anderson Braga Horta
  • INVENÇÃO DE ORFEU - Jorge de Lima
  • LAVRÁRIO - Márcio Almeida
  • LIRISMO RURAL (O Sereno do Cerrado) - Gilberto Mendonça Teles
  • MEL PERVERSO - Márcio Almeida
  • MELHORES POEMAS - Paulo Leminski
  • NARCISO - Marcus Accioly
  • O ESTRANHO CANTO DO PÁSSARO - Célio César Paduani
  • O ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA - Cecília Meirelles
  • O SONO PROVISÓRIO - Antônio Barreto
  • O TERRA A TERRA DA LINGUAGEM - Gilberto Mendonça Teles
  • OS MELHORES POEMAS DE FERREIRA GULLAR - Ferreira Gullar
  • PASTO DE PEDRA - Bueno de Rivera
  • PLURAL DE NUVENS - Gilberto Mendonça Teles
  • POEMA SUJO - Ferreira Gullar
  • POEMAS REUNIDOS - Gilberto Mendonça Teles
  • POEMAS REUNIDOS - João Cabral de Melo Neto
  • POESIA REUNIDA - Jorge Tufic
  • RETRATO DE MÃE - Jorge Tufic
  • SIGNO (Antologia Metapoética) - Anderson Braga Horta
  • VER DE BOI - Pascoal Motta
  • VESÂNIA - Márcio Almeida
  • VIANDANTE - Yeda Prates Bernis