DO POEMA
COMO FÁBULA DISPERSA
Geraldo Reis
Por primeiro,
a José Marcelino de Souza Filho (SHINO),
poeta e menino,
vão
esses versos a esmo,
a mim mesmo.
Aos dois,
fadados ao mesmo destino,
dedico esse poema
como primeira fábula dispersa.
Essa pedra respira,
(diz o menino)
no bolo caseiro,
o outro pergunta:
onde?
O primeiro responde:
No lombo traseiro
do burro do conde.
Essa pedra respira
(prosseguem)
e trabalha
e transpira.
(Viva a festa
Viva a experimentação!)
É pedra que rola
e parece ter cheiro de pedra mesmo
cheiro de campo e cidade.
É pedra que embolada,
tem cheiro de mato
tem cheiro de tudo
tem cheiro de nada.
Cheiro espesso,
molhado de areia,
cheiro brilhante e saboroso
cheiro branco e pegajoso
de cavalos mancos
a galope na rua estreita de um sonho.
Cheiro da mistura
que promete ser um quadro
pintado com palavras no barranco.
Cheiro que escorre na parede escura,
dos olhos de alguém que prepara
uma festa de amor para a noite,
e jura
um amor de pedra que dura
e eternamente dói na formosura.
Sentindo cheiro de sono
na hora da reza,
o menino acaba dormindo até de manhã.
Quando acorda, lá se foram
as coisas que ficaram sonhadas
entre o cheiro doce de grama depois da chuva
e o cheiro de esmeraldas que seriam
depois de tudo, meras turmalinas.
Lá se foi o cheiro de ouro
das alianças quebradas,
e lá e se foi, especialmente,
o cheiro das meninas a caminho do baile,
hora dançante, assim chamado.
Lá se foi cheiro do alicate
de trabalhos manuais
do menino artesão,
perdido na feira.
Lá se foram todas as coisas rochosas
perdidas para sempre:
o cheiro de pedra colorida
usada no fardamento dos nobres
o cheiro de pedras do calçamento pobre da rua onde eu morava
o cheiro das pedras de ruas da periferia
(nem eram pedras, eram poeira _
onde moravam outros meninos ainda mais pobres.
o cheiro dos pés que ficaram na pele das pedras,
o cheiro do café que sai toda manhã do casarão
desabitado há mais de um século,
o cheiro dos corredores de casarões
acordados à noite pelo riso
das ratazanas que zombam dos gatos,
o cheiro de conversa fiada
no bar que não vendida nada,
o cheiro de boatos.
Lá se foram as figuras de santos
de calendários caprichosamente colecionados.
Lá se foram os versos mancos
de certo caderno de quadras,
quase trovas, versos enquadrados
que ninguém sabe onde anda.
(Lá se foram
coisas velhas
completamente velhas
que para nós seram novas),
e lá se foram noivas
e novidades.
De repente,
lá se foi o cheiro dos diques
dos cliques e dos alambiques
dos sinos e dos repiques.
Perderam-se nas entranhas de novas idades,
o cheiro de fazenda
o cheiro de estrume,
o cheiro espavorido de um punhal,
o cheiro esquisitado de sangue
de um moço morto ainda moço
que já se achava morto ou quase morto
antes,
de ciúme.
Perderam-se nas entranhas de novas idades,
o cheiro de engenho,
o cheiro de cidade,
o cheiro quente de rapadura,
o cheiro áspero de pedra da pedra-de-engenho
que dói no milho impossível que o tortura.
O cheiro da pedra
bate até que fura
o cheiro da pedra
é que dói na formosura.
E os meninos versam e conversam a valer.
Falam do cheiro de uma planta solteira
usada pelo padre às escondidas do bispo,
para encantar a donzela de espinhela caída
e de grandes olhos azuis,
redondos e grisalhos.
Falam do cheiro de olhar sorrateiro
onde soprar um cisco,
atrás da igreja, onde enganar o sineiro,
cheiro silencioso do vinho do padre
cheiro do olhar do sacristão
arisco,
correndo risco.
Falam do coração viúvo
que de repente cismou de parar
e se atirou da varanda
do edifício em frente...
e doeu no jornal,
cheiro desesperado de quem
perdendo-se de amor,
ficou doente.
Cheiro da notícia de um dia
tempos depois
quando os jornais televisivos
anunciaram a cura de todos os males,
inclusive do amor faltoso
e dos pesadelos do moço morto,
para o próprio bem
que, morrendo uma vez, não morre mais.
Os meninos conversam
e versam a valer
porque a poesia é um jogo
de cartas e pedras marcadas.
Dizem do cheiro
de um arremedo de samba
cheiro de quem sempre
viveu na corda bamba.
E dizem do cheiro inventado
pelos duendes achados no parque,
cheiro de carne juvenil,
cheiro de charque
cheiro de abril
de algaravia
cheiro de algazarra sutil.
(A correria verde dos soldados
tem cheiro de fuzil).
Cheiro indigesto chorado
pela garganta incolor da cotovia,
cheiro do canto de um pássaro
que não via
e não havia
que não teria cantado, nem nascido.
Cheiro deixado na partitura
a ser decifrada
pelo pároco,
pelo bispo,
pelo cura,
cheiro de remendo,
de um embaraço infeliz
nas roupas de "Rei do Carnaval em Paris".
Cheiro de espadas,
de armadilhas atravessadas no mapa,
e de um tesouro para além das Tordesilhas.
Cheiro de uma noite
dentro de outra noite não-inventada,
cheiro de ouro caseiro
e cheiro de um ouro-preto imaginado.
Cheiro de açoite
cheiro de cicatriz no lombo escravo
cheiro infeliz de certo antepassado
e acreditam que teria sido "um bravo".
Cheiro de tudo e de nada,
cheiro de amuleto
cheiro de banda que toca
e amanhece o coreto,
enquanto a galinha choca
e amanhece o galinheiro,
cheiro de conversa fiada:
cheiro de tudo e de nada,
cianureto cobrindo a madrugada.
Os meninos con /versam a valer.
E a pedra conversada
pensa e conspira
e respira pela metade,
no bolo caseiro
do menino pobre
que reinventando-se pelo cheiro,
de ponta a ponta,
reinventa a mocidade.
As cores se misturam
a novos cheiros inventados,
e a pedra explode!
Explodindo, pensa que pode
alimentar a cidade
alimentar o mundo
alimentar a eternidade.
E enquanto a pedra
respira e pensa,
o menino transpira
o universo gira
na valsa caseira
impenitente ou caipira.
O menino con / versa
e escreve
no seu pensamento,
ou numa folha que passa
levada pelo vento:
«Pássaro:
De dia,
canto cinzento,
quando anoitece
torre de cimento."
Depois, alheio,
no seu devaneio
compra e embrulha:
Um púlpito de pedra
Um pórtico de pedra
Uma ópera de pedra
Um santo de pedra
Uma pálpebra de pedra
Uma pedra de pedra.
Como retoque,
talvez acabamento,
dá um cântico de pedra em pagamento.
O menino acordado
no seu pensamento
acredita que dorme.
E direi que sonha
de um pesadelo enorme.
Sonha que a vida é breve
que a tarde é viúva
que a chuva é medonha
que a cigarra é saúva.
Com ternura é que esteve
sonhando no sonho
ou melhor, no pesadelo,
e domando a pedra.
E sonhou que a pedra
domaria a plebe
que domando a plebe
domaria o homem
que domando o homem
domaria o mundo...
E faria do mundo
um outro mundo:
seu reinado.
Mas a verdade é dura,
a vida é curta
e a viagem, sendo longa,
é enfadonha.
Se um menino pensa
o outro pensa em consumir a pedra
Um menino pensa em conspurcar a pedra
Acordar o sonho que dorme no interior da pedra.
O outro, pensa
engravidar a pedra
e povoar o mundo,
sob o poder da pedra
e do alumbramento da pedra
que levará seu nome.
Voar sob o poder da pedra que leva
no bolso esquerdo do tempo,
e que pesa como um relógio.
E o menino inventa um condado...
e até inaugura, de fato,
algum reinado.
Desenha chuva
e escreve “treva”.
Inventa um paraíso
e escreve “fado”.
Numa folha seca
escreve "neve”.
Sua aldeia é toda inventada.
Tudo é inventado
o mundo é inventado
e é "novo em folha".
Vendo as pedras enlouquecidas
escreve "povo".
Talvez seja preciso vacinar as pedras...
"Era uma vez..."
O outro menino escuta
contadas do Sino das Mercês.
Ouvindo o som da chuva,
escreve "sino"
ouvindo o som do sino,
escreve “trova”.
Na sua teologia (ou cosmologia)
a poesia se curva,
a manhã cristalina
em verdade, é turva.
E tudo se renova.
Na sua sacristia
por amor
a noite devora as obras
do dia anterior,
Tudo como
se um santo de pedra
na verdade
fosse um Deus devorador.
No seu compromisso
de revisitar a quimera
a pedra reconfigurada é primavera,
e é tão redonda que lembra a lua cheia.
Particularmente,
um menino recreia,
olhando de perto
diremos que pranteia
e é dado que certo,
jamais devaneia
quem escreve «deserto»
Num monte de areia.
Ninguém comenta
mas é o que se presume:
pode até ser água-benta seu perfume.
O tempo talvez
o nome dos dois
principalmente nos versos
a rima que se foi.
"Salvar a pedra?
Fica pra depois."
Lá se foi a pedra particular de cada um
e a pedra comum de dois
pedra libertadora,
pedra de experimentação.
Foram-se os meninos,
mas o que será feito
de todo esse mistério, amanhã?
O que será feito
de toda essa matéria
e, principalmente,
de suas artérias,
se os dois meninos
escutando o sono,
escutando o sino
e permeando o frio,
ficarão de férias?
A poesia, não.
No compromisso seu
de revisitar a quimera
no interior da pedra reconfigurada,
a primavera é redonda,
tão redonda que lembra a lua cheia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário