12/05/2013

OURO PRETO: A CASA DOS CONTOS



A Casa Eternizada, Multiplicadora de Espantos
        

        Tive o meu encontro com o inefável a partir de uma visão que eu diria caótica (também transfigurada e transfiguradora) das casas e ruas de Ouro Preto e Mariana. Pude, assim, dizer que ali: 

        O casario todo
        range doido e teme

        meu corpo de enforcado
        pendendo das goteiras. 

            E pude constatar que: 

        antes da memória o medo
        já pastava essas montanhas
        
        e o desespero futuro
        ventava nos arvoredos.
        
    Em razão dessa tresloucada abordagem, diálogo meramente estético com os sítios dadivosos de Ouro Preto e Mariana, e em razão, sobretudo e principalmente, de nossa antiga amizade, recebo de Elias Layon, um convite feito quase à queima-roupa, para uma viagem de retorno a Ouro Preto, e que devo empreender através de seu mais recente trabalho, creio.

    O convite tem razão de ser. É que o extraordinário pintor acabou de dar à luz uma “série expressionista” cerca de 100 quadros, centrada na Casa dos Contos. Trata-se, segundo diz, de “um tributo” ao monumento, desta feita, porém, segundo outra ordem estética.

    Ei-lo, assim, expressionista, grande fabro, reinventando a Casa e as suas entranhas, de uma maneira, diz, “mais solta e mais despojada”. Com esse despojamento, é que põe a casa em movimento e em pesadelo, como coisa viva, como ser pensante. 

    Cuidadoso, me avisa: 
    
    “A Casa pertence ao Ministério da Fazenda”, mas não é verdade. A Casa, Elias, pelo menos esta, reinventada, é patrimônio de outra humanidade. Agora, mais do que nunca, é patrimônio do indescritível, do indizível, do ininventável, de uma emoção estética toda feita de cór (o acento, aqui, é licença poética) e de cores em movimento.
    
    Nas telas, a Casa transcende a matéria de que é feita. É como um rio vazando as comportas e que se derrama. Depois de Elias Layon, seguramente, a Casa dos Contos é outra Casa, e segundo a nova estética, é líquida e ao mesmo tempo vaporosa.

    Ora arrancada de suas raízes é levada pelo vento, ora inventando intempéries, a Casa (que é interior) é futuro e é passado.

    Por exemplo, aqui a Casa chove. Daqui a pouco um relâmpago há de atravessar as suas entranhas (corredores, sótãos e porões), e no afã de se mostrar amorável, a Casa há de abrir suas portadas e janelas para que venha o vento, esse mesmo vento que ontem soprou sobre o corpo desesperado de Cláudio, tomado de extermínio. Falta-lhe talvez, e apenas, para completar o espetáculo, meu corpo de enforcado pendendo das goteiras, repetindo o poema. É assim que te vejo, ó Casa dos Contos!

    Em boa hora, quando a memória dos homens, por tranquila, ia dando o passado por encoberto, o dito pelo não-dito, o morto pelo mito, Elias Layon te reinventa, e te dá formas e cores que não suspeitávamos. E te dá uma fisionomia outra, desconhecida de todos nós.

    Nessa viagem, a Casa anoitece, a Casa amanhece. De repente, rubra. É como um ferro em brasa: carece de marcar a pele sombria dos homens? A memória vazada de esquecimento?

    Tendo adquirido vida própria através desse “trabalho de parto”, a casa renasce. E quando renasce, dói. Depois, engrisalha, envelhece empanturrada de história, chega à janela de si mesma e vai fundo na sensibilidade. 
    Quando venta, Layon, é a Casa que suspira, reinventada... Como é formidável essa Casa! Azul. Infinitamente. 

    O azul que é cinza? Não importa. 

    É lilás? Importa menos ainda. 

    Aqui, vale a transfiguração, mais do que o azul-beira-de-abismo, o azul cismando-vésperas-de-verde. 

    Eh, a Casa foi, por amor, roubada a Ouro Preto. Reside agora nos quadros incendiados de Elias Layon.

    Se aqui a Casa desaparece entre brumas, ali, transpõe os umbrais do medo e reaparece luminosa. Agora desconectada de sua realidade estática, está ligada à estética. 

    E aí, a Casa tem gestos que vêm de caibros e ripas, de telhados antigos e de certas paredes (a parede é carne humana de fato, ousei dizer num poema antigo), de certas janelas que acenam, e de umas pedras que, esquecidas, são escadas, gestos marcados com as digitais de nossos antepassados, sinais que Elias cuidou de redescobrir e preservar.

     Olho a Casa, e ela conversa comigo, reinventada nesse desvario que é dele (Pintor) e dela (Casa), assim irmanados.

     Num idílio de cores incomuns, momento seu de especial criação, Elias “viaja” até às entranhas da Casa, viaja de peito aberto e talvez de olhos fechados porque não carece de abrir os olhos para fazer a viagem, se a Casa é interior. Viaja completamente para espreitá-la e desvendar-lhe mistérios de ontem, inventando-lhe mistérios de amanhã.
  
    O fato é que, nessa viagem, Elias Layon não hesitou para que a Casa, mercê de todo esquecimento, se mudasse para as telas.

    Ao transfigurar a Casa, revela para todos nós a sua variegada face, essa face outra que é da Casa, e é de Elias Layon: face nova, pletora de uma metáfora que se projeta no futuro, tanto eternizada quanto multiplicadora de espantos.


Fonte: www.eliaslayon.com.br

Autor: Geraldo Reis

Data da publicação no site: 2010-01-31

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