A Casa Eternizada, Multiplicadora de Espantos
Tive o meu encontro com o inefável a partir de uma visão que eu diria caótica (também transfigurada e transfiguradora) das casas e ruas de Ouro Preto e Mariana. Pude, assim, dizer que ali:
O casario todo
range doido e teme
meu corpo de enforcado
pendendo das goteiras.
E pude constatar que:
E pude constatar que:
antes da memória o medo
já pastava essas montanhas
e o
desespero futuro
ventava nos arvoredos.
Em razão dessa tresloucada abordagem, diálogo
meramente estético com os sítios dadivosos de Ouro Preto e Mariana, e em razão,
sobretudo e principalmente, de nossa antiga amizade, recebo de Elias
Layon, um convite feito quase à queima-roupa, para uma viagem de retorno a Ouro
Preto, e que devo empreender através de seu mais recente trabalho, creio.
O
convite tem razão de ser. É que o extraordinário pintor acabou de dar à luz uma
“série expressionista” cerca de 100 quadros, centrada na Casa dos Contos.
Trata-se, segundo diz, de “um tributo” ao monumento, desta feita, porém,
segundo outra ordem estética.
Ei-lo,
assim, expressionista, grande fabro, reinventando a Casa e as suas entranhas,
de uma maneira, diz, “mais solta e mais despojada”. Com esse despojamento, é
que põe a casa em movimento e em pesadelo, como coisa viva, como ser pensante.
Cuidadoso, me avisa:
“A Casa pertence ao Ministério da Fazenda”, mas não é verdade. A Casa, Elias, pelo menos esta, reinventada, é patrimônio de outra humanidade. Agora, mais do que nunca, é patrimônio do indescritível, do indizível, do ininventável, de uma emoção estética toda feita de cór (o acento, aqui, é licença poética) e de cores em movimento.
Nas telas, a Casa transcende a matéria de que é feita. É como um rio vazando as comportas e que se derrama. Depois de Elias Layon, seguramente, a Casa dos Contos é outra Casa, e segundo a nova estética, é líquida e ao mesmo tempo vaporosa.
Ora arrancada de suas raízes é levada pelo
vento, ora inventando intempéries, a Casa (que é interior) é futuro e é
passado.
Por
exemplo, aqui a Casa chove. Daqui a pouco um relâmpago há de atravessar as suas
entranhas (corredores, sótãos e porões), e no afã de se mostrar amorável, a
Casa há de abrir suas portadas e janelas para que venha o vento, esse mesmo
vento que ontem soprou sobre o corpo desesperado de Cláudio, tomado de
extermínio. Falta-lhe talvez, e apenas, para completar o espetáculo, meu corpo
de enforcado pendendo das goteiras, repetindo o poema. É assim que te vejo, ó Casa dos Contos!
Em boa hora, quando a memória dos homens, por tranquila, ia dando o passado por encoberto, o dito pelo não-dito, o morto pelo mito, Elias Layon te reinventa, e te dá formas e cores que não suspeitávamos. E te dá uma fisionomia outra, desconhecida de todos nós.
Nessa viagem, a Casa anoitece, a Casa amanhece.
De repente, rubra. É como um ferro em brasa: carece de marcar a pele sombria
dos homens? A memória vazada de esquecimento?
Tendo adquirido vida própria através desse
“trabalho de parto”, a casa renasce. E quando renasce, dói. Depois, engrisalha,
envelhece empanturrada de história, chega à janela de si mesma e vai fundo na
sensibilidade.
Quando venta, Layon, é a Casa que suspira,
reinventada... Como é formidável essa Casa! Azul. Infinitamente.
O azul que é cinza? Não importa.
É lilás? Importa menos ainda.
Aqui, vale a transfiguração, mais do que o azul-beira-de-abismo, o azul cismando-vésperas-de-verde.
Eh, a Casa foi, por amor, roubada a Ouro Preto. Reside agora nos quadros incendiados de Elias Layon.
Se aqui a Casa desaparece entre brumas, ali, transpõe os umbrais do medo e reaparece luminosa. Agora desconectada de sua realidade estática, está ligada à estética.
E aí, a Casa tem gestos que vêm de caibros e ripas, de telhados antigos e de certas paredes (a parede é carne humana de fato, ousei dizer num poema antigo), de certas janelas que acenam, e de umas pedras que, esquecidas, são escadas, gestos marcados com as digitais de nossos antepassados, sinais que Elias cuidou de redescobrir e preservar.
Olho a Casa, e ela conversa comigo, reinventada nesse desvario que é dele (Pintor) e dela (Casa), assim irmanados.
Num idílio de cores incomuns, momento seu de especial criação, Elias “viaja” até às entranhas da Casa, viaja de peito aberto e talvez de olhos fechados porque não carece de abrir os olhos para fazer a viagem, se a Casa é interior. Viaja completamente para espreitá-la e desvendar-lhe mistérios de ontem, inventando-lhe mistérios de amanhã.
O fato é que, nessa viagem, Elias Layon não hesitou para que a Casa, mercê de todo esquecimento, se mudasse para as telas.
Ao transfigurar a Casa, revela para todos nós
a sua variegada face, essa face outra que é da Casa, e é de Elias Layon: face
nova, pletora de uma metáfora que se projeta no futuro, tanto eternizada quanto
multiplicadora de espantos.
Fonte: www.eliaslayon.com.br
Autor: Geraldo Reis
Data da publicação no site: 2010-01-31
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